domingo, 6 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 50

José, tem calma!

A curta conversa que sobre o tema mantive com o Ortega não me satisfez. Não me sinto satisfeito. Prometi forçar um encontro com o inspector Cardoso da Judiciária mas não sei se este é o caminho adequado. Preferiria que a iniciativa viesse do lado oficial, ou oficioso. Vou ficar quieto na casa do Vale e aguardar, com um esforço de serenidade, que as coisas corram sem que seja eu a empurrar.

Tenho a noção, e não estou errado, de que muito do que orienta as investigações da polícia tem a participação, ou mesmo a sua origem, em denúncias. Quantas vezes anónimas ou com pedido de não serem identificadas documentalmente. Mas não gostaria de ficar catalogado como um bufo, um informador, um denunciante. Prefiro que se considere que tenho razões, mais do que suficientes, para apresentar queixa contra uns desconhecidos que invadindo terrenos privados, por sinal de minha propriedade, nos colocaram numa situação de podermos ser considerados como parte activa em dois crimes de morte. É com este argumento, exclusivamente, que eu devo apresentar-me, voluntariamente na sede da PJ de Coimbra, se antes não for notificado para comparecer a fim de declarar. Ou seja, mantenho a minha decisão de aguardar, pelo menos mais um dia.

Mesmo assim sei que terei uma noite mal passada. Não porque o que jantei implique uma digestão turbulenta, mas porque o meu pensamento está ocupado neste assunto, que, queira ou não, pode ser orientado para uma investigação apurada aos meus negócios. O aviso do Dr. Sílvio CARDOSO, foi bem claro, e, por isso mesmo, tive que reagir de imediato. Falta saber se esta minha mudança chegará para que a pasta dos Maragatos possa dormir o sono dos quase justos.

E já cheguei a casa, que tem luzes acesas desde a entrada até as salas e quarto do primeiro andar. A Luísa deve estar aguardando a minha chegada, apesar de que ao deixar o Ortega lhe tenha telefonado dizendo que não há grandes novidades, que podia deitar-se com um livro interessante e que não demoraria, pois iria sem paragens desde Aveiro a casa. Oxalá ela tenha o bom senso de não me fazer um daqueles interrogatórios conjugais, que são apanágio das mulheres. São piores do que os da polícia, a não ser quando estas forças da ordem optam pela agressividade e arreiam. Eu, pessoalmente, nunca fui alvo de pancada. Mas soube de interrogatórios que deixaram marcas visíveis, além das sequelas internas. 

- Então Luísa? Vejo com agrado que optaste pela minha dica. Ou seja que tiraste as roupas de rua e estás aguardando no leito conjugal. Dormitaste?

- Nem por isso. Entre chegar, arrumar a tralha de dois dias na boa-vai-ela e tomar um banho reconfortante, quando entraste tinha-me deitado naquele momento. Dá cá um abraço, com beijo a cavalo -não procures interpretações eróticas! Foi um trocadilho de índole culinária- E sei que deves estar fatigado; tal como eu. Não me faças um relato, toma o teu duche e vem descansar ao meu lado. Teremos tempo e cabeça fresca amanhã para poder matutar no que pensas fazer. Anda, vai para a casa de banho e não te entretenhas! 

Não só tomaste banho, como fizeste a barba e cheiras à loção que sabes eu aprecio. Já agora, tens ideia de que muitas esposas consideram as loções da barba dos seus maridos como sendo pócimas milagrosas? Estão convencidas de que são melhores, para tudo, do que a água de Fátima. E quanto a esta comparação não tenho nada a dizer, para não criar susceptibilidades.

O que sabes de certeza é a que corresponde referir o descanso do guerreiro.  Para te proporcionar uma dormida reparadora não sei de melhor tratamento do que unir os nossos corpos, com a promessa irrevogável de que, depois de te servires devidamente, vou deixar-te cair para o lado. E até ressonar se for caso disso. Anda cá e não te finjas estar desinteressado. Tens aqui quem te quer atender não só de braços abertos como também de pernas bem abertas, escarranchadas, como sei que gostas de ver.
..

- De facto dormi como uma pedra. Pelo menos até as quatro da madrugada, em que voltaram as incógnitas e a indecisão acerca do que tenho que fazer. Para já vou engolir um comprimido, minúsculo, de Valium, porque se não for assim amanhã não serei capaz de mandar uma para a caixa (1)

Ao acordar recordei parte do sonho, ou pesadelo, que me apoquentava. Os pormenores sumiram-se, mas sei que o tema de fundo fixava-se no que tinha sido a minha vida até este momento e na dúvida do que seguirá. Mesmo a dormir estava ciente de que é relativamente fácil rememorar o passado, apesar da selecção que o inconsciente faz, colocando no canto mais recôndito do arquivo as vivências que nos desagradaram. Suponho, no seio da minha ignorância supina, que imaginamos o futuro, mesmo dormindo, em função do que gostaríamos que ele fosse e também baseando-nos no que já conhecemos do passado. Ou seja, que adivinhar o futuro, havendo como há tantas variáveis que não dependem da nossa vontade, é uma tarefa inglória. E o tentar descortinar o que deve acontecer, é tempo perdido inutilmente.

Acordado -antes que o comprimido faça efeito- rememoro que ao longo do tempo em que fui casado com a Constança, procurei que ela fosse mantida de fora das minhas actividades. Da mesma forma com que ela jamais se referiu ao modo como o seu pai fez fortuna no Brasil e consegui “comprar” um mísero título de comendador, que mais tarde já no fim da sua vida, após investir noutra dádiva generosa à corte, foi elevado à categoria de Conde do Vale. É provável que Constança, não sendo estúpida, que não era, preferiu viver num estado de defesa, num “faz de conta” como as crianças quando brincam com bonecas ou cozinhas minorcas. Era impossível que não soubesse da existência de escravos nas fazendas do pai no Brasil, e dos castigos crueis que lhes davam. Assim como fingia nem sequer desconfiar das conversas recatadas que eu mantinha com alguns visitantes da mansão, que raramente lhes eram apresentados. Assim vivia mais feliz. Não é a única pessoa que, por sistema, olha para o lado oposto dos acontecimentos.

Agora com a Luísa, que teve uma infância bastante diferente, e com os seus percalços, mesmo no meio popular em que viveu, tive bastante receio de a deixar entrar nos meus assuntos, mais para sua defesa do que por desconfiança. Sem pressas ela terá que ser o meu braço esquerdo, pois sendo eu destro o direito está activo e em bom uso.

(1) locução antiga que hoje poucos devem saber de onde vem. Nas tipografias que compunham os textos escolhendo as letras em pequenos cacifos, quando se tinha que desfazer a prancha era necessário voltar a colocar os tipos nas caixas correspondentes. Uma tarefa especializada que devia ser feita rapidamente e sem enganar a colocação.



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