quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

MEDITAÇÕES - Obsessões parvas


PAIXÕES IMAGINADAS

Especular, sem ter uma base sólida onde me apoiar, é um atrevimento que pode dar resultados desagradáveis, ou pelo menos errados. Mas adiante! Atrevo-me a dizer que em muitas cabeças, consideradas como relativamente sensatas, ou pelo menos loucas à solta, sejam de homens ou de senhoras, devem existir, no canto da vassoura e da esfregona, uma pessoa pela qual se suspirou durante bastante tempo e que, anos mais tarde de ter o seu início, ainda constitui uma espécie de cume inalcançável e indestrutível.

As únicas referências que consegui recordar onde aparecem paixões imaginadas, estão todas do mundo da fantasia, ou descendo um pouco à terra, na literatura, incluída a poesia, e nas artes plásticas. O que é mesmo difícil é aceitar que alguém estava atacado pelo vírus mental responsável por tal obsessão. A razão desta rejeição em admitir uma situação que, a meu ver, deve estar muito estendida pela humanidade é porque aquilo que surge, mentalmente, não casa com a realidade vivida.

Muitas das personagens que nos obcecam sentimentalmente é pouco provável que tenham estado num nível de proximidade que justifique o impacto que se admite causou. Ou seja sente que não tem um fundamento plausível. Daí que se pode diagnosticar como uma falsa memória, implicando alguém que, sem razão, a mente decidiu que nos deixou o testemunho de uma “paixão não transmitida ou não correspondida” .

Este tipo de obsessões profundamente enraizadas são referidas com bastante frequência na poesia, literatura, pintura e artes plásticas. Alguns casos tornaram-se paradigmáticos, não só porque existem dúvidas de qualquer deles ter chegado a vias de facto, mas porque se tem quase a certeza de que tudo não passou de uma miragem obsessiva., unidireccional.

O mais famoso, ou pelo menos aquele que levou a ter muitos comentadores e especuladores, corresponde ao quadro da Gioconda, com o seu ambíguo sorriso, pintado pelo mestre Leonardo de Vinci. Aliás os quadros, pois existe mais do que uma versão, sem contar as cópias identificadas como tais e as falsificações. Muito se escreveu a propósito deste amor, que supomos ter sido mais platónico do que carnal, entre o grande Mestre e a dama que foi o seu modelo. Até porque consta o Mestre Leonardo ter outro tipo de paixões carnais mais acentuadas e, embora usuais, não aceites. E, caso o mundo civilizado não termine de repente, é muito provável que esta obra continue a chamar a atenção e a fomentar especulações.

No âmbito da pintura há outros exemplos de obcecações do artista para o seu modelo. Teria que dar uma volta pelas monografias da pintura e descartar aqueles casos em que o pintor se admite, ou se sabe, que conseguiu os favores, ou o prazer da carne, como se diz numa tentativa de esclarecer sem ser vulgar.

Já dentro do período de tempo em que me tem calhado estar presente, o que leva a palma de fauno-mor foi o malaguenho Picasso, e aquele que deu muita tela à sua dama, o seu coetâneo Dali, mais a sua “esposa” Gala, apesar deste ser um reconhecido homossexual.

No campo da literatura podemos recuar até Dante, com o seu amor mental, reservado mas evidenciado entre nevoeiros de fantasia, para Beatriz. Ainda mais sonhado, até ao nível da obsessão, é o que Cervantes insistentemente refere da sua criatura, nitidamente lunático, Dom Quixote, ou a personagem “real” que o autor colocou na visão terrena do sonhador com o nome de Alonso Quijano, um nobre arruinado e totalmente fora da época em que decorre a acção. A musa, o amor obcecado de Cavaleiro louco era a imaginada Dulcineia del Toboso, uma mistificação da rústica Aldonça Lourenço, não mais do que empregada numa albergaria de caminhantes e comerciantes de passagem.

E deveria entrar directamente na literatura portuguesa, onde não faltam os amores não correspondidos, imaginados ou proibidos, Mas este tema já foi exaustivamente debatido e publicado no seio da meio nacional.

Onde eu queria chegar é à possível existência em muitas mentes, ainda hoje em estado latente, de obsessões amorosas que jamais foram correspondidas, ou nem sequer tentadas. Que ficaram nas mentes delas ou deles como enquistadas e que, periódicamente afloram para ensombrar a razão, ou seja a mente, do afectado/a.

Uma situação que se tornou recalcada, e resguardada no tal canto escuro e esconso dos artigos de limpeza caseira, e que a pessoa que a sofre, ou a vive mentalmente, não tem a mais mínima satisfacção, Mais até, pode causar uma adversão, por ser consciente de que não tem qualquer razão de existir. Que é uma especulação dos neurónios, baseada em detalhes quiméricos, sem importância real, só virtuais. Dizendo de outra forma: Estas obsessões “amorosas”, normalmente não estão ligadas a visões, imaginadas, no campo do erotismo, nem passivo e menos activo. É esta sedimentação mental na zona do mais respeitoso amar que as torna mais duras de roer e duráveis.

Se as imagens mentais se completassem com visões de índole sexual, ou mesmo pornográfico, não permaneceriam durante décadas. Seriam substituídas por outras ainda mais cruas. É a imaginada possibilidade de terem tido alguma oportunidade, que não existiu, que as tornou perenes.

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