terça-feira, 24 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE . Cap. 58


Com um pé no avião

Já preparados para ir até Coimbra e enquanto tomamos o pequeno almoço lembrei-me de uma anormalidade que senti no salão, aliás nos dois pois a experiência repetiu-se em ambos. As clientes juntavam as cabeças para cochichar e exclamavam aqueles “não me digas”, que traduzido o eufemismo quer dizer conta mais que isto é saboroso, e seguidamente agarravam no telelé para distribuir a novidade, tapando o bocal com a outra mão e assim fingir estar segregando. Passados uns minutos perguntei às empregadas o que acontecia de tão importante. Enviaram-me para a Ivone, que tu sabes ser a minha chefe de plantão quando eu não estou.

A Ivone tentou deixar passar a bola, mas quando lhe apontei o entusiasmo que reinava entre as galinhas (são as clientes, caso não soubesses) teve que abrir o jogo e contar-me que se tinha apresentado, na Câmara Municipal, uma brigada mista das Finanças e Judiciária para ver e estudar ao detalhe a documentação de alguns serviços. A reacção imediata dos curiosos foi a de que esta presença inesperada devia ter alguma ligação com os mortos da casa do Vale. Eu disse-lhe que não parecia ter nada a ver uma coisa com a outra. Que os assassinatos não acostumam a ficar documentados nas Câmaras. Que isto deve ser consequência de alguma denúncia. Tu tens ideia do que se está a passar?

- Ouve Luísa. Sabes que eu nunca quero saber de política e de políticos, e em quase todas as Câmaras Municipais, para não dizer que em todas pois não quero carimbar sem conhecimento de causa, surgem assuntos que podem levar a denúncias. Os eleitos foram apoiados por algum partido, e nas estruturas existem sempre interesses, sejam pessoais ou de negócios. Depois surgem os compadrios e os concursos amanhados, ou decisões tomadas sem concurso, desdobrando as empreitadas para não atingirem patamares com exigências legais que se for possível vão fintar.

Ou seja, com as decisões camarárias, nem sempre podem-se evitar que os preteridos se sintam ultrajados, e daí a fazer reclamações e denúncias. Numas mais e noutras menos eu creio que será o pai nosso de cada dia, especialmente naquelas Câmaras com orçamentos vultuosos. Neste caso, comparativamente, pode tratar-se mais de uma quezília pessoal do que de montante elevado. O que te garanto é que eu, José Maragato, nada tenho que me ligue a esta inspecção, nem tenho nem tive qualquer negócio ou contencioso com a edilidade.

Luísa, esquece. Isto não é coisa nossa e o melhor é ouvir e calar, pois qualquer comentário teu ou meu, pode ser deturpado. São assuntos que não nos dizem respeito.

Esquecendo esta novidade, eu depois da conversa com o Dr. Cardoso, sinto-me mais leve, mais descontraído, mais confiado. Deixou-me a impressão de que, pelo menos no seu serviço, estão tomando este assunto dos mortos plantados mais seriamente do que eu temia. Isso não obsta a que certos capítulos permaneçam ocultos, em sigilo confidencial. Mas como a imagem que temos acerca das pessoas que se movem nas altas esferas já está mais do que feita, não os desprezaremos mais nem menos, humana e socialmente falando. Antes de ir visitar o Cardoso vamos passar pela agência de viagens onde eu, anteriormente, tratava de passagens, hotéis e trajectos.

Boa tarde, Dona Isaura. Como tem passado? Pelo seu aspecto, cada vez mais jovem, deduzo que a saúde, felizmente, não lhe tem dado cuidados de maior.

- O Doutor Maragato sempre tão amável. Mas garanto que em mim também pesam os anos. Por enquanto não sofro de grandes desgastes, mas sei olhar para o futuro observando as pessoas com que habitualmente convivo. Mas diga. O que é que o traz por cá, e tão bem acompanhado...

- Desculpe o meu descuido, Dona Isaura. Devia ter começado por lhe apresentar a minha esposa, de seu nome Luísa Maragato depois de papel passado. Um apelido que não soa muito bem,mas é aquele que herdei de família.

- Ao que íamos, ou viemos. Pensamos em aproveitar umas semanas de sossego antes dos calores estivais para dar um passeio pela Europa. Num esquema meio de grupo e meio por conta própria. Nós ainda não definimos grande coisa. Por exemplo: gostaríamos de passar uns três dias em Paris, incluindo um passeio pelos castelos do Loira. Depois saltar para Bruxelas, outros três dias. E depois Berlim, outra paragem. Daí saltar para Viena, dois dias ou três. O percurso pelo Danúbio, que é tão afamado, a mim, pessoalmente, não me entusiasma, pelo menos se for longo; com uma escala e passar para terra já ficaria satisfeito. Mas com um bom livro e umas bebidas sou capaz de aguentar sem me atirar à agua. Visitar Budapeste é fundamental.

O melhor, a partir destas linhas, que se podem alterar com pareceres fundamentados ou outras vontades da Luísa, eu vos deixo. A Dona Isaura se tiver paciência de uma ajuda e carregue a esposa de folhetos. Depois, em casa ela fará a sua análise, que discutiremos (sem pelejar). E nos próximos dias voltaremos para formalizar a encomenda. Agora eu tenho que visitar um amigo na Polícia Judiciária, que penso estarem instalados ai perto. Até já. Não me demorarei, espero bem.

- Boa tarde, Aqui está o meu Cartão de Cidadão para me identificar. Será possível saber se o Dr. Sílvio Cardoso se encontra no serviço, e caso afirmativo poderia perguntar, se fizer este favor, se me pode atender um momento?

- O Dr. diz que o pode atender de imediato. Eu o guiarei pois sinto que não conhece o interior desta casa. Faça o favor de me acompanhar.

- Dr. Cardoso, desculpe o importunar no seu trabalho, mas surgiu um tema que, não estando ligado directamente com o processo que nos levou a ser partes integrantes, de lados diferentes mas não opostos, segundo eu avalio. Pois bem, como ficamos mais tranquilos quanto à evolução oficial do inquérito, pensamos, a Luísa e eu, se poderia ser aceite que tomássemos umas férias antes dos calores estivais, e viajássemos pela Europa durante umas três semanas. Sei que não estamos qualificados como arguidos, mas não queria “desaparecer” sem dizer aquilo do água vai! Daí que antes de avançar como plano de viagem quis saber se existia algum impedimento oficial. O que me diz o Dr. ?

- Vão descansados e desfrutem. Todavia e na previsão de qualquer imprevisto que os possa implicar, se o Amigo Maragato, quando tiverem o plano de viagem definido, com dias e estadias marcadas em hotéis com telefone e o resto da modernidade, seria bem visto que nos deixasse uma cópia. Se bem que hoje basta saber o indicativo do País onde se encontrem para que com o telemóvel os poderia contactar.

- Obrigado Dr., E recordo uma sua pergunta que, por estar pendente de outro assunto, deixei passar sem resposta. Estranhou o nosso apelido de família Maragato. É o mesmo esquema do que acontece com aqueles que carregam, oficialmente, com o apelido Algarvio, Alentejano e outros. Sem ser uma cristianização de judeus ou se calhar até teve a sua origem nestas conversões forçosas, o nosso Maragato vem apenso ao facto de que a origem da família estava na Maragateria, uma região espanhola de cariz rural. E todos os que dali se deslocavam para outras regiões, eram apelidados de maragatos, como aqui os bimbos, por exemplo.




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