O
que nos ata
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Tentando escapar dos temas que nos ocuparam nas últimas horas,
gostaria que me acompanhasses até os teus novos domínios, onde o
Ernesto Carrapato teve a lembrança de recuperar a horta que ali
mantinha a minha mãe. Isso se o feitor não estiver presente, pois
neste caso recomendo que lhe facilites a oportunidade de brilhar, lhe
faças perguntas simples mas pertinentes. Por exemplo, como em que
altura é aconselhável semear, ou plantar pés tirados de um
viveiro; ou quando pensa que já poderemos consumir algum destes
legumes. Tu saberás orientar a conversa.
Olá
Amigo Ernesto. A minha esposa insistiu em que viesse com ela para
visitar este renascer da horta da minha falecida mãe e que a também
já falecida esposa detestava, ou não ligava peva. Dizem-me que está
afazer um bom trabalho, e como as minhas recordações de infância
estão pouco nítidas apreciaria que, junto com a aqui presente
Isabel me dessem umas lições de horticultura e, caso lá tenham
chegado, de floricultura. Passo a palavra. Bem, quanto a alfaces,
couves, cenouras, salsa e coentros creio que estou aviado. Mas e das
flores?
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Marido, tem calma, as flores que se encontraram nos viveiros estão
plantadas na parte da frente, em canteiros discretos que não
ofusquem a ruralidade, domesticada, de arbustos e árvores. Quando
dermos a volta à mansão poderás verificar como daquele lado, o que
consideram nobre, também já se iniciou um bom trabalho. Mas a
estação está muito adiantada e só conseguiremos algumas flores
outonais, que não são as mais espectaculares, destacando, mesmo
assim, a família dos crisântemos. Todavia os que se plantaram este
ano, caso floresçam, é pouco provável que consigam dar flores
grandes e espectaculares. Não podemos alterar o ciclo da natureza. A
não ser com as estufas...
Pensamos
em procurar roseiras, já enraizadas, para transferir para dar uma
moldura colorida e simpática; mas para isso teremos que aguardar
pela estação adequada. Confia no Senhor Ernesto e, se cederes na
minha capacidade de me instruir, garanto que procurarei literatura de
jardinagem, na Vila ou em Aveiro, ou mesmo em Coimbra, depois posso
inscrever-me nesta história das novas profissões, caso não estejam
limitados à culinária de autor e à informática.
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Por mim tenho que afirmar que fiquei muito interessado e satisfeito
com esta iniciativa. Se calhar quem não estará tão contente serão
as pessoas do Vale que, até agora nos forneciam deste produtos da
terra.
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Não te preocupes. Já passei a palavra, através da Idalina e da
Amélia para que sossegassem as senhoras do Vale. Esta horta só será
uma brincadeira, que não evitará a dependência dos produtores e
fornecedores habituais. Já tínhamos pensado nisso e procuramos
evitar rancores sem fundamento.
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Tudo bem quando começa bem, e melhor se termina também da forma
mais agradável. E como com isso já estamos quase a chegar à hora
do almoço, se não te importes agarrava-te como vítima
propiciatória para desbobinar algumas reflexões que, habitualmente,
tenho que mastigar a sós, pois são temas que não se podem
distribuir como os abraços, sob risco de ser considerado chalado,
como mínimo. Eu mesmo não dou valor a estas preocupações
despropositadas. Digo, interiormente, que não são mais do que
tentativas falidas de filosofia barata. Cá vai disto, agarra-te e
faz um esforço de compreensão.
Por
muita vontade que coloquemos na tentativa de orientar o nosso
comportamento, seja no âmbito privado ou no semi-público(1) como
propósito de não nos comprometer, nem de dar sentenças firmes, é
de boa cautela não esquecer que todos estamos condicionados por uma
série de compromissos, muitos deles com cariz de ser inamovíveis.
Estas prisões podem ter a sua origem em diversos capítulos da nossa
vida pessoal, desde o que arrastamos por herança familiar ou de
grupo, ou das crenças a que se aderiu. Mesmo que racionalmente não
lhes demos o valor que se admite, socialmente, que os credos merecem
sem discrepar.
Ao
longo dos anos qualquer pessoa, considerada como normal -uma
valorização bastante ambígua e elástica-, vai tecendo
uma rede à sua volta que o inibe de poder pensar, principalmente
agir, conforme o seu instinto imediato lhe pede. A sociedade, no seu
conjunto funciona, quase que surdamente, aceitando e cumprindo um
enorme acervo de regras. No caso de alguém, agindo por impulso ou
julgando ser consciente, desobedecer esta cartilha. Pior até se
insistir em que pode levar a sua revolta a bom termo. Chegará o dia,
mais cedo do que se imagina, em que se encontrará isolado.
Mesmo
que decidir recuar, procurar modificar a sua atitude, será muito
difícil que possa alterar o retrato que criou e que ficou gravado na
mente de quem com ele teve amizade ou qualquer contacto, mais ou
menos intenso. Um rifoneiro de 1780 afirma, entre muitos outros
provérbios e anexins: A má chaga sara e a má fama mata. Em má
hora nasce, quem má fama cobra. Quem má fama tem garantida, morto
ainda nela tem vida. Perca-se tudo, fique a boa fama.
(1)
O recurso a disfarçar
através de um prefixo “semi”, além de me dar a sensação de
ser ineficaz, traz-me sempre à mente aquela piada da menina que
alegava estar um bocadinho grávida. O utente mais picante desta
historieta fechava com a afirmação de que desconfiava disso desde
uma meia hora antes, quando practicou o dito amor com o seu namorado,
com satisfacção, ardor e sem protecção.
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