sexta-feira, 13 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – CAP. 51


O que nos ata

- Tentando escapar dos temas que nos ocuparam nas últimas horas, gostaria que me acompanhasses até os teus novos domínios, onde o Ernesto Carrapato teve a lembrança de recuperar a horta que ali mantinha a minha mãe. Isso se o feitor não estiver presente, pois neste caso recomendo que lhe facilites a oportunidade de brilhar, lhe faças perguntas simples mas pertinentes. Por exemplo, como em que altura é aconselhável semear, ou plantar pés tirados de um viveiro; ou quando pensa que já poderemos consumir algum destes legumes. Tu saberás orientar a conversa.

Olá Amigo Ernesto. A minha esposa insistiu em que viesse com ela para visitar este renascer da horta da minha falecida mãe e que a também já falecida esposa detestava, ou não ligava peva. Dizem-me que está afazer um bom trabalho, e como as minhas recordações de infância estão pouco nítidas apreciaria que, junto com a aqui presente Isabel me dessem umas lições de horticultura e, caso lá tenham chegado, de floricultura. Passo a palavra. Bem, quanto a alfaces, couves, cenouras, salsa e coentros creio que estou aviado. Mas e das flores?

- Marido, tem calma, as flores que se encontraram nos viveiros estão plantadas na parte da frente, em canteiros discretos que não ofusquem a ruralidade, domesticada, de arbustos e árvores. Quando dermos a volta à mansão poderás verificar como daquele lado, o que consideram nobre, também já se iniciou um bom trabalho. Mas a estação está muito adiantada e só conseguiremos algumas flores outonais, que não são as mais espectaculares, destacando, mesmo assim, a família dos crisântemos. Todavia os que se plantaram este ano, caso floresçam, é pouco provável que consigam dar flores grandes e espectaculares. Não podemos alterar o ciclo da natureza. A não ser com as estufas...
Pensamos em procurar roseiras, já enraizadas, para transferir para dar uma moldura colorida e simpática; mas para isso teremos que aguardar pela estação adequada. Confia no Senhor Ernesto e, se cederes na minha capacidade de me instruir, garanto que procurarei literatura de jardinagem, na Vila ou em Aveiro, ou mesmo em Coimbra, depois posso inscrever-me nesta história das novas profissões, caso não estejam limitados à culinária de autor e à informática.

- Por mim tenho que afirmar que fiquei muito interessado e satisfeito com esta iniciativa. Se calhar quem não estará tão contente serão as pessoas do Vale que, até agora nos forneciam deste produtos da terra.

- Não te preocupes. Já passei a palavra, através da Idalina e da Amélia para que sossegassem as senhoras do Vale. Esta horta só será uma brincadeira, que não evitará a dependência dos produtores e fornecedores habituais. Já tínhamos pensado nisso e procuramos evitar rancores sem fundamento.

- Tudo bem quando começa bem, e melhor se termina também da forma mais agradável. E como com isso já estamos quase a chegar à hora do almoço, se não te importes agarrava-te como vítima propiciatória para desbobinar algumas reflexões que, habitualmente, tenho que mastigar a sós, pois são temas que não se podem distribuir como os abraços, sob risco de ser considerado chalado, como mínimo. Eu mesmo não dou valor a estas preocupações despropositadas. Digo, interiormente, que não são mais do que tentativas falidas de filosofia barata. Cá vai disto, agarra-te e faz um esforço de compreensão.

Por muita vontade que coloquemos na tentativa de orientar o nosso comportamento, seja no âmbito privado ou no semi-público(1) como propósito de não nos comprometer, nem de dar sentenças firmes, é de boa cautela não esquecer que todos estamos condicionados por uma série de compromissos, muitos deles com cariz de ser inamovíveis. Estas prisões podem ter a sua origem em diversos capítulos da nossa vida pessoal, desde o que arrastamos por herança familiar ou de grupo, ou das crenças a que se aderiu. Mesmo que racionalmente não lhes demos o valor que se admite, socialmente, que os credos merecem sem discrepar.

Ao longo dos anos qualquer pessoa, considerada como normal -uma valorização bastante ambígua e elástica-, vai tecendo uma rede à sua volta que o inibe de poder pensar, principalmente agir, conforme o seu instinto imediato lhe pede. A sociedade, no seu conjunto funciona, quase que surdamente, aceitando e cumprindo um enorme acervo de regras. No caso de alguém, agindo por impulso ou julgando ser consciente, desobedecer esta cartilha. Pior até se insistir em que pode levar a sua revolta a bom termo. Chegará o dia, mais cedo do que se imagina, em que se encontrará isolado.

Mesmo que decidir recuar, procurar modificar a sua atitude, será muito difícil que possa alterar o retrato que criou e que ficou gravado na mente de quem com ele teve amizade ou qualquer contacto, mais ou menos intenso. Um rifoneiro de 1780 afirma, entre muitos outros provérbios e anexins: A má chaga sara e a má fama mata. Em má hora nasce, quem má fama cobra. Quem má fama tem garantida, morto ainda nela tem vida. Perca-se tudo, fique a boa fama.


(1) O recurso a disfarçar através de um prefixo “semi”, além de me dar a sensação de ser ineficaz, traz-me sempre à mente aquela piada da menina que alegava estar um bocadinho grávida. O utente mais picante desta historieta fechava com a afirmação de que desconfiava disso desde uma meia hora antes, quando practicou o dito amor com o seu namorado, com satisfacção, ardor e sem protecção.

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