terça-feira, 10 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 50



Ter dúvidas

- Estás convencido de tudo o que me tens dito a respeito do comércio de artigos contrafeitos pelos tais de etnia cigana, e dos acordos, digamos que tácitos por não serem oficiais, entre as autoridades e os delinquentes, nos seus diferentes graus e estatutos? Ou seja, pensas que o que se insinua é uma boa política? É que eu não fiquei muito convencida de que tudo isso funcione por baixo da mesa.

- Utilizaste a palavra-passe, a Política, que sempre está por cima de todas as facetas das nossas vidas. E que eu evito, tanto quanto me é possível, meter. Nisto das políticas em plural, pois existem muitos capítulos neste amplo domínio, a maior parte dela causa-me fastio, além de descrédito. Penso, e estou a ser meigo, que devem existir pessoas com muito boas intenções que decidem meter-se no campo dos políticos veteranos, profissionais, com a pretensão de encarreirar ou corrigir coisas que considera, e com razão e motivos mais do que suficientes, que não são conduzidos em consonância com a vontade e necessidades dos cidadãos. Ele, o tal utopista, dando crédito ao que ouve dizer por boca de alguns concidadãos, imagina que se pode sentir apoiado por uma força social, que imagina corresponder a um apoio incondicional por arte dos sempre queixosos. Pode chegar a um nível de convicção, irreal, que o leve a tentar penetrar num vespeiro que, de facto, desconhece.

Estes românticos sociais, se são coerentes de si próprios e não toleram ser constantemente ignorados, ou mesmo despeitados, por aqueles que já considerava serem seus pares, o mais provável é que desista a tempo, ou seja, mesmo antes de começar, antes de que se transforme num vendido, em mais um zangão, que só estão para promover os interesses pessoais e de grupo; seguir as directrizes da cúpula, que são os que distribuem as benesses. Em resumo, o campo da política não se pode considerar um território apto para pessoas escrupulosas.

Não sei se respondi cabalmente ao que perguntaste. Pela tua cara parece que não. Verei de ser mais concreto, de descer até a questão das feiras e de como penso que as coisas funcionam por trás do pano. Sim, porque aquilo que te disse não está confirmado por nenhuma opinião externa; são simplesmente cismas minhas, que imagino não estarem muito longe da realidade. Quanto se entendo que, caso as coisas funcionem como penso, constituem uma política correcta, aceitável, sensata, não te posso responder com convicção, pois não duvido de que haverá quem discorde, total ou parcialmente. Assim como os há que, nem que seja pelo silêncio, mostram que esta deve ser a atitude certa, a mais útil para a sociedade em que vivemos.

Seja como for, e dado que me acompanhas desde algum tempo, sabes que me é impossível ficar sempre ao largo dos políticos, e que todos aqueles que estão ligados à estrutura governamental, principalmente se ocupam lugares daqueles que mudam de titular quando se altera o esquema do poder, os que são escolhidos a dos pelos eleitos entre os seus apoiantes. Por isso quando tenho algum assunto a tratar com algum dos servidores comprometidos, como é o caso dos presidentes de câmara e de juntas de freguesia, entre outros, procuro evitar opiniões que colidam com a política pura e dura. O melhor, entendo eu, é limitar-me ao papel de um simples cidadão, embora que no degrau da escala que me pertence. Um trato quanto mais possível de igual para igual. Mesmo quando se pede um favor sem ir à fila onde se apresentam os requerimentos e se aguarda para ser atendido. Mas, jamais, comprometo as minhas simpatias ou mando recados acerca das minhas preferências na ocasião de votar. Caso me apresente nas urnas.

Este terreno é um fétido lamaçal, e se temos que entrar na orla, é pertinente calças botas de borracha. De cano alto até a cintura se o assunto prometer que pode ir mais longe do que a prudência pessoal consente. Não sei se te disse que, ao longo de anos, antes e depois da casado com a falecida Constança, e até quando era estudante em Coimbra, fui inquirido para formar parte da Associação, de várias Juventudes partidárias e depois para os partidos “a sério”, além de Rotários, Lyons e outras beneméritas associações. Sempre escapei alegando que tinha compromissos que não me pareciam ser compatíveis, e nem tempo disponível; que agradecia o convite mas que, sinceramente, não me considerava poder vir a ser um membro útil.

- Mas tanto o teu pai como o teu avô creio recordar teres dito que pertenciam à maçonaria, ao Grande Oriente Lusitano, ou ao seu equivalente naquela época. E tu? Tiveste coragem e arrojo para não aceitar, nem que fosse por descendência directa?

- Tive que aceitar, para não ofender certas personalidades que respeito dentro daquela ordem reservada e sigilosa. Tenho que te mostrar a tralha que constitui a farpela, que dizem terem herdado dos pedreiros franceses, especialmente os que se encarregavam de erguer catedrais, palácios e edifícios públicos que foram representativos e merecedores da vaidade dos cidadãos. Estes pedreiros “livres” constituíam um grémio fechado, tal como os dos ourives e outros artífices reputados, tinham as seus estatutos, regras, tribunais, examinadores para aceitar ou expulsar membros; reuniões teatrais que ainda permanecem entre eles, ritos mais esotéricos e caricatos do que próprios de pessoas respeitáveis. Ou seja, que a mim esta parafernália não me cativou e, progressivamente, deixei de participar. Mas ainda tenho, numa caixa escondida, o avental, o colar, o punhal e outras brincadeiras que devia envergar. Um dia terei que te mostrar.

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