domingo, 15 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – CAP 52

SENTEM-SE OS PODERES FÁCTICOS

- Já passaram algumas horas desde que, por sugestão minha, demos uma volta na recuperação da horta que a tua mãe mandou plantar quando vieram morar a esta mansão. Agora é a altura de me dares a tua opinião sem fingimentos.

- Aquilo que disse na ocasião só posso confirmar. E se não tenho propriamente uma vocação para plantar e colher cenouras ou nabos, mesmo que batatas, dado que plantar lascas de bacalhau não devem pegar e nos oferecer bacalhaus inteiros, sem escalar nem salgar, isso não obsta a que fique feliz por tu estares animada. Te ver na conversa com o Ernesto, comentando o que esperam ver crescer e frutificar, fez-me recuar muitos anos de vida; senti cá dentro como se a minha saudosa mãe se tivesse reencarnado em ti.

- Fico sensibilizada com este teu depoimento, sem notário para dar fé. Mas no que não gostei foi nesta tua visão de me veres de encarnado. Sou do Pourto e não me venhas com benfiquices. Ah Ah Ah. Agora, mais a sério, quando tu foste com o Ernesto até o armazém, adega, casa das máquinas e sei lá quantos mais nomes vocês lhe dão, chamaram-me desde a varanda por ter um telefonema em que perguntavam por mim. Não esperava nada de especial. Pensei que fosse alguma decisão num dos salões que era urgente e não queriam dar o seu ámen sem me consultar.

Para surpresa, mesmo recordand0 que já me tinhas falado nesta possibilidade, quem estava do outro lado da linha era uma senhora, com uma voz agradável, que me disse se chamar Diana, casada com o teu amigo (?) Doutor (isso nesta terra nunca se pode deixar esquecido) Cardoso. Referiu que o seu marido lhe incumbiu de acertar um almoço de casais que os dois homens já tinham alinhavado, sem concretizar data nem local.

- É verdade, e eu falei-te nisso. Só que pensei que fosse uma gentileza daquelas que não são para ligar. Que não teria continuidade. Mas não se ficou com algum roteiro mais ou menos definido.

- A dita Dona Diana parece que estava com a lição bem aprendida, apesar de que utilizou alguns subterfúgios, próprios das mulheres, para não abrir o jogo por completo. Se calhar receava que o seu telefone estivesse sob escuta. Mesmo assim, e como digo sem abrir o que se entendia nas entrelinhas, disse que o melhor dia para ambos era o domingo, pois o marido trabalhava ao sábado e ela era raro o sábado em que não passava pela faculdade para ver pontos ou preparar aulas. Por nós não havia problema. Era perfeito. E para donde nos deveríamos dirigir?, já que o meu marido me disse que eles, os “cabeça de casal” parece que pensaram num local, sem definir, onde pudéssemos estar sossegados e fora de sermos reconhecidos. Deu como certo que se desejava um almoço pessoal e não profissional.

- E...?

- Nada mais se disse sobre esta proposta. Só que a chamada era para ter uma abordagem inicial e que possivelmente o seu marido, um dia destes e aproveitando alguma deslocação de serviço, passaria pela nossa casa e então decidiriam. A seguir e para não parecer que tinha sido excessivamente seca e profissional, enveredou numa conversa de mulheres, sobre filhos, animais de companhia, casa, em como se conheceram na Universidade logo no primeiro ano, e blá, blá, blá, que não vale a pena relatar, nem sequer tentar recordar, passou como água saindo da torneira. Foi-se pelo ralo abaixo!

- Nos poucos minutos em que conversei com o Cardoso ele teve tempo de me apresentar esta sugestão, de almoçarmos num local onde a possibilidade de encontros fosse reduzida. Fiquei com a impressão de que se sentia incómodo, vigiado, pressionado e que o caso dos mortos plantados nos nossos terrenos foi, para ele, como um presente envenenado. Que lhe calhou a bola preta, como nas votações entre maçons. Posso estar enganado, mas inclusive as palavras que o Ortega não disse, ou seja o que estava insinuado nos seu relato e que nem ele, que parece ter caminho livre no seu comportamento, se sentia com coragem para nem sequer tocar, me indicavam que aquilo se encaminhou para um terreno fortemente minado.

- Posso concordar contigo, meditando no que tenho ido sabendo desde que nos vieram alertar de que os cães do feitor tinham encontrado o primeiro desgraçado. Bem me alertaste de que se aquilo estivesse ligado a reuniões ou festas de qualquer tipo, organizadas e comandadas por gente de peso na economia e na política, era muito perigoso teimar em saber de mais. E a prudência da tal Doutora e Professora de Universidade Diana Cardoso, que além de telegráfica nos seus dizeres, passou rapidamente a mandar bolas fora, causou-me um retraimento ao qual não estou habituada. No meu meio, onde a ilustração académica não é geral, as coisas dizem-se mais claras ou nem sequer se tocam, especialmente quando cheiram a merda. E há muitas qualidades de merdas, desde a diarreia incontrolável até aquela mais rija que só sai com ajudas. Agora temos que aguardar o que irá dizer, caso diga alguma coisa, o Dr. Cardoso quanto ao ainda não localizado “almoço de convívio e segredo”.

Da minha parte, e para que não parecesse que me descartava ou desentendesse, comecei a espiolhar na memória e tenho uma recordação, bastante difusa, de ter ido, quando os meus filhos eram crianças, até a Lousã, que nesta época do ano só deve ser visitada por grupos de escuteiros, comandados por um maduro de calção curto, velhos e turistas excêntricos. Ali as crianças desfrutaram percorrendo um castelo miniatura ao pé do rio. Depois, se não estou enganado, almoçamos muito sossegados e satisfeitos numa antiga azenha que fora modernizada para restaurante. Tudo isso foi no século passado, e nem sequer tenho a certeza de nada. Deixarei isto como uma pista e possivelmente o Cardoso já deve ter um local na sua mira.

- Parece-me uma excelente proposta. Não esta em concreto, mas o mostrares que te interessaste pela sua ideia.


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