segunda-feira, 9 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 49




Divagações infundadas

- Desculpa por ontem não dormir em casa. Mas fui dando notícias durante o dia, e fiquei para jantar com um sócio com quem era indispensável ter uma conversa calma, e sem testemunhas que interferissem. O encontro prolongou-se até que tiveram que nos avisar de que fechavam o local. Ainda paramos no bar do hotel para fechar, ou continuar, alguns temas. Além de que as conversas com talheres e outras com um whisky velho no copo são mais descontraídas, coisa que me interessava, pois este Sousa -se calhar não te identifiquei o parceiro deste encontro. Não foi por mal, nem para esconder coisas, mas já sabes da história da boca fechada e das cautelas com caldos de galinha.

Seja como for, este Nelson DE SOUSA conhece o ramo têxtil do norte palmo-a-palmo, tanto dos maiores como até a mais pequena chafarica. E eu, entre outras muitas coisas que me aquecem a cabeça, ultimamente estive atando nós sobre este ramo da economia. Foi o visitar os terrenos do Ortega, mais propriamente as feiras onde os seus “súbditos” negoceiam, que me levou a ter meditações ao nível do absurdo. Ou nem tanto ...

- Tinha ideia de que esta actividade industrial dos têxteis não te era estranha, mas não estava a par da importância que lhe devotavas. Aliás. E para atender aos teus desejos, sempre procurei não espiolhar nos teus assuntos. Dizes que quanto menos souber, melhor para mim e para ti. Mas desta vez, se calhar sem o pretender, acendeste a chama da curiosidade. Agora terás que por mais alguma coisa no prato, por assim dizer.

- Tens razão. Mais uma vez. E as coisas são muito evidentes. Passa-se tudo em frente do nosso nariz e, precisamente por ser tão óbvio, não ligamos demasiado. Acontece como avisa o refrão A árvore esconde o bosque,
que nos diz como aquilo que nos chama a atenção nos impede de atender ao que está por trás. Os ilusionistas, ou mágicos se preferires, usam constantemente esta técnica.

- Se não te explicas melhor, e com casos concretos, digo-te que fiquei pior do que na mesma. Estas generalidades são muito interessantes, mas preciso, por ser burra, de poder localizar o ponto onde ajustar a pontaria.

- É que não me deixaste terminar. Aliás, creio que para que tudo fique mais diáfano, e por não ser a síntese o meu forte, necessito de bastante tempo a discursar. Tudo começou quando se tornou evidente aquilo que sempre suspeitei: que deve existir, ou existe mesmo, um acordo no nevoeiro entre o sub-mundo do crime, ou em partes dele, e o sector oficial de quem incumbe a repressão.

Todos sabemos que por trás de eufemismos, de cenários inócuos, se escondem realidades que não se deseja se tornem públicas. Por exemplo, se nos dizem que “fontes reservadas” (ou outra frase equivalente) nos informaram de..., o mais provável é que ali existem denuncias. Que há bufos não temos dúvidas. Sempre os houve e os haverá. Quem estiver interessado e saber o que não se conta procura levantar o véu daquilo que se deseja fique escondido. Para o conseguir tem que procurar alguém que esteja por dentro e disposto a colocar a boca no trombone, sempre e tanto que, para este “benemérito” lhe seja oferecida uma contrapartida interessante. Isto é o que sucede geralmente, tanto no ramo oficial como no privado.

Por vezes nem é preciso “corromper” ninguém. Basta estar atento e ouvir, assentar as coisas interessantes e unir as pontas soltas. É o que eu fiz. Começando por algum lado, sabes que existe um mercado da contrafação, especialmente presente nas feiras periódicas por todo o País, e que os vendedores, practicamente exclusivos, são de etnia cigana. Pertencentes a diferentes famílias, que distribuem o território entre elas, em acordos tão firmes como se fossem assinados com sangue -pelo menos é o que imagino- e sem necessidade de passar pelo notário.

E não tarda que se pense onde é que estes comerciantes ambulantes se abastecem? Podíamos imaginar que as mercadorias lhes podiam ser enviadas desde Marrocos, Espanha, Itália, Turquia ou outro país qualquer, pois creio que em todo lado existe um núcleo de copistas trabalhando com um à vontade de espantar.

Pois, depois de ver, com olhos de ver, a zona do têxtil em Portugal e sabendo mais algumas coisas além do muito que a população em geral conhece, tenho a certeza de que estas cópias falsas são produzidas aqui, neste rectângulo, jardim à beira mar. E TODOS sabem disso. É impensável que ignorem uma indústria paralela que dá trabalho a muita gente, que alimenta muitas famílias, onde trabalham sem vínculo legal desde as avós às crianças que ainda não atingiram a idade legal para trabalhar. Tudo isto é arquiconhecido. E podes perguntar porque é permitida esta falcatrua, este desfalco ao fisco e às leis do trabalho e da protecção industrial?

As razões são múltiplas. Para começar não desvalorizamos que um sector importante da população está na pobreza ou nos limites. Que os impostos, seja Iva ou Profissional, que não se cobram de imediato, virão depois ter à tesouraria através do consumo. E que os pobres já não amealham como antigamente, são adeptos, por pressão do mercado, ao conhecido chapa ganha chapa gasta, de onde já abrirá os cordões à bolsa quando se abastecer no super ou hiper, mesmo no caso de que nestes locais exista algum alçapão, coisa que desconheço mas que não me admiraria. Pior do que o não amealhar é que são induzidos a pedir créditos bancários para diversos propósitos, desde a compra de casa até carros ou férias. Ficam presos pelo pescoço, como numa coleira, e estarão sempre com o credo na boca.

Por outro lado podemos perguntar quem pressiona a ASAE para travar o comércio de contrafeitos, sejam têxteis, malas ou sapatos? É evidente que devem ser as grandes marcas, as da publicidade dirigida a quem dispõe de um poder de compra que não está ao nível do todos os que frequentam as feiras. Mas quem é que tem pena das grandes marcas? E deixemos de lado, apesar de não ignorar, a invasão de produtos fabricados no oriente, em especial na China, depois desta quase que liquidar o Japão no pequeno e grande comércio.

E será que os feirantes não sabem, com antecedência, que serão visitados? Não só pelos inspectores da dita ASAE, sempre acompanhados por membros da PSP da terra onde se realiza o mercado. E será que na esquadra ninguém é “amigo” dos ciganos e os avisa a tempo e horas? E que os feirantes, colocam material com pouca venda nas bancas para que os inspectores encham sacas e sacas? E depois façam uns magníficos relatórios?

- E tu tens a certeza do que tens estado a contar? Quem é que te deu estas indicações?

- Ninguém. Podes estar certa. Todos se fecham em copas. Mas as coisas funcionam, à vista de toda a gente. Nunca te perguntaste como podia ser isso, tantos descuidos, tanta boa vontade? É uma questão de bom senso. E admito que ficaram mais algumas coisas por referir. Isabel, este mundo, como dizem os italianos, é um mondo cane, mundo cão em português, mas eu encontro um sabor especial ao italiano.

Na Itália. Especialmente no sul, o mundo do contrabando e das falsificações de todo género, além de muitos outros negócios, como o das obras públicas de grande porte, consta que está nas mãos das máfias, que tanto se podem chamar de camorra em Nápoles e arredores, como cosa nostra na Sicília. Diferem no nome e nos chefes, capos, na sua língua. Sabias que quando os aliados, nomeadamente os americanos, decidiram desembarcar na Itália encarregaram-se de estabelecer e garantir o apoio da subterrânea máfia, através dos seus mafiosos residentes? E que foram os mafiosos radicados nos USA que, com promessas de liberdade e imunidade, se encarregaram dos contactos com os seus primos latinos?

- E será que estas entradas de mafiosos do leste Europeu prenunciam um domínio estrangeiro dos negócios escuros e perigosos na nossa terra? O que aconteceu no Vale deve levar-nos a pensar. Eles andam por aí. Pelo menos é o que noticiam os tabloides nacionais.


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