quarta-feira, 4 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap 45º



A caldeirada já foi

- Então Amigo Maragato, que me diz desta caldeirada à Montemor? Não é necessário que me diga que em vez de moreia ou safio encontrou enguias. Mas e o resto, e o tempero?

- Confesso que jamais na vida me passaria pela cabeça vir comer uma caldeirada de peixe aqui. Habitualmente. Além de alguns tascos célebres de Aveiro, eu iria até Buarcos, onde conheço excelentes cozinheiros e cozinheiras. Mais elas do que eles, que sem desmerecer dos homens com avental, no computo geral as mulheres levam a palma. Também tenho que admitir que a sua previsão acerca de que dois bons garfos não conseguiríamos dar cabo da caldeirada, estava certa. Mesmo assim não me sinto perdedor, pois captei que o Ortega já bateu esta praça, e muitas outras, desde anos atrás e, por isso, joga sempre em casa, o seu terreno.

Também deixo as sobremesas à sua escolha, embora sem desprezar a prova dos doces não dispenso uma talhada de melão, casca de carvalho se o tiverem e seja bom. E atrevo-me a pedir que, enquanto moemos o prato principal, entremos na segunda parte da conversa, e assim reclamar da promessa.

- Há bastante que contar e aquilo que hoje não ficar totalmente claro teremos outras ocasiões para entrar em detalhes. Indo ao que mais importa. Por boca de contactos individuais, com elementos do pessoal menor, que sempre sabem muito mais do que os chefes imaginam, soubemos que, de facto, os organizadores contrataram para serviço de segurança quatro elementos da máfia internacional, cujas identificações coincidiam com as que apurou a PJ. Simplesmente não se conseguiu apurar nada concreto para os incriminar. Não admira, pois são malta batida e sabem que tinham as costas quentes. Os testemunhos que os viram a festa e na mata eram coincidentes, mas segundo a polícia, inúteis para conseguir uma condena. O único caminho que restava era o de agir com as mesmas armas dos mafiosos, e para isso o Dr. Cardoso afirmava que nas famílias ciganas havia elementos mais capazes do que nos membros das ditas forças da ordem.

Em princípio aceitamos vigiar e seguir a caça, evitando que nos fugisse da mão. O aplicar justiça por conta alheia não é coisa que se possa admitir sem uma profunda justificação. Sugeri ao Doutor que, usando elementos de saias, podíamos conseguir alguma desunião entre os membros daquele exército tão complexo, com tantas nacionalidades e costumes. Temos mulheres e raparigas muito capazes de dar a volta a qualquer macho, e no rescaldo levar a fortes ciumeiras entre candidatos a comer o doce. Uma vez que, subterrâneamente, se conseguisse quebrar o aço daquela fortaleza, sendo eles fortes de músculo e gatilho, eram com certeza fracos em perspicácia. A muito de um lado corresponde pouco de outro.

- E esta táctica deu resultado?

- Não sei ao certo. Sei que a Lola, uma mulher jovem, experiente, das que enganam turistas fingindo que sabem ler a sina, enfeitiçou um romeno e um croata, duas bestas de volume considerável; só músculos. Foram vistos a discutir por palavras e gestos. O romeno querendo ter ascendente porque, afirmava convicto, que ele também era de etnia cigana e por esta razão reclamava o direito de conquista da Lola. Como evoluiu esta quezília não sei, mas passados uns dias encontraram o corpo do croata nas rochas do Cabo Carvoeiro. Já só restavam três. E eu dei ordem para que a Lola fosse viajar, rapidamente, até casa duns parentes que moram em Granada. Ninguém, mesmo ninguém, entre os meus fez a mínima referência ao falso namoro desta sacrificada Lola. Que levou um envelope bem cheio com euros para compensar o seu esforço.

- Ortega. Antes que continuemos e este capítulo se perca, faço questão para ser da minha bolsa que se deve liquidar esta gratificação. E não quero conversas ao contrário. Amigos são amigos e responsabilidades são de cada um.

- Já falaremos disso com calma. Já disse que ficavam três malandros a punir. Conversando, sempre sem testemunhas nem gravadores, com o Dr. Cardoso pensamos em se lhes poderíamos armar uma ratoeira que levasse a uma cena de tiros onde “os nossos”, da união inexistente, tivessem boas hipóteses de apanhar algum deste peixe. Sugeri fingir que na feira de gado de Viseu se fizessem umas grandes vendas, como sempre a dinheiro. Tanto vendedores como compradores seriam gente “da casa”, e portanto seria a dinheiro vivo (aparentemente, pois que misturar folhas de jornal com notas para fazer maços e uma das nossas habilidades. Temos treino constante!) A minha gente não entraria com armas de fogo, mas sempre existem navalhas que bem trabalhadas podem enviar para os anjinhos o mais astuto dos paios. Armas de fogo e os melhores atiradores disponíveis na polícia ficariam de atalaia, aguardando os nossos sinais.
- E conseguiram caça?
- Nem tudo. Dois foram abatidos no local, o romeno e um outro que não esteve no Vale. Da tropa de elite só houve um ferido sem gravidade. E restaram dois dos quatro que o incomodaram.
- Em tão pouco tempo conseguiram, as forças conjuntas, mas sempre com o importante contributo dos elementos do grupo do Ortega, uma verdadeira proeza, pois não podemos esquecer que aquela malta não são propriamente meninos do coro. É pena que ficassem dois.
- Não se lamente antes de tempo. Parece que aquele forasteiros entraram em crise e que se sentiram demasiado vigiados nesta zona. As bulhas continuaram, por motivos e razões que desconhecemos, mas dias antes do vosso regresso encontraram um corpo, nu e de mãos e pés atados, precisamente no local que anteriormente profanaram. Foi identificado pela Interpol como um dos membros do gangue, e por cá viu-se que era mais um do quarteto. Restava um. Comentou-se de que çhes cheirou existirem represálias pelo atrevimento de colocar vítimas deles no vosso terreno. É possível que com este sacrifício pretendessem conseguir uma espécie de armistício.
- Não me diga que também liquidaram este último?
- Não, nada disso, nem do terceiro tivemos ou a PJ a mínima ingerência. A vigilância continuou e no dia do vosso regresso passaram três carros cheios de indivíduos mal encarados por Vilar Formoso, rumo a Espanha e possivelmente a países europeus que não tivessem memória visual da sua estadia em Portugal. Dr. Cardoso me informou de que entrou em contacto imediato coma Interpol, e directamente com a delegação em Espanha e a Francesa para que os vigiassem.

- O Amigo Ortega tirou-me uma grande preocupação de cima, e estou ansioso para poder contar estas novidades à minha mulher. Bem me anunciou que trazia boas novas, mas nunca imaginei que seriam tão completas, mesmo que, por enquanto, Ainda um deles ande a monte, como quem diz. Deixe-me pagar este almoço, e espero que quando tiver tempo livre em Aveiro me avise para ter mais uma conversa.

Venha este abraço, bem à vista de todos. E agradeço, de todo coração, os esforços de vigilância que os seus amigos, não só do seu clã mas também de outras famílias desta grande etnia portuguesa.

- Maragato, não exagere. Sei bem como é a minha gente, e nem todos são iguais, tal como acontece com os paios. Para já, desde muito novos trazem visco nos dedos e a noção de propriedade privada,pelo menos no que respeita aos não ciganos, lhes é bastante indefinida,por dizer de alguma forma menos agressiva. Mas são amigos fieis de quem decidem podem situar neste cacifo. Os outros... o melhor é não esclarecer. Boa viagem e cumprimente a dona Isabel de minha parte. É uma boa companheira para si.



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