quinta-feira, 5 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE . Cap 46º


Primeiro relatório caseiro

- Zé, já estava preocupada contigo. Saíste logo depois de engolir o mata-bicho, e de então em diante foi como se tivesses sido raptado pelos extraterrestres. Nem uma chamada de telefone até agora.

- Desculpa Isabel, mas as coisas encandearam-se de uma forma até misteriosa. O Doutor Cardoso, com a desculpa do segredo de justiça fechou-se em copas; não abriu boca e despachou-me para o rei dos ciganos, o Ortega, que conheces. Para me sossegar disse que o Ortega sabia tanto quanto ele e que com certeza que não teria rebuços -se preferires escrúpulos- para me informar. Mesmo assim quase que marcou um almoço, para conversar fora de portas, com os dois casais. E propôs que a sua mulher, de nome Diana, combinaria a data e local directamente contigo. Estes homens da polícia são muito cuidadosos...

Como já era hora de almoço e porque com a boca cheia é mais fácil despegar os dentes e dar à língua, liguei logo para o Rei Ortega para ver se estava disponível. Encontrava-se na feira de Montemor e ficamos em almoçar os dois, sem companhias. O lugar do encontro e do almoço era meu conhecido, de forma que não tive que andar à procura. A refeição foi agradável. Uma caldeirada à Montemor! Nunca imaginei procurar uma caldeirada sem ser à beira-mar. E ao longo de uma sobremesa demorada o Ortega fez-me um relato muito detalhado do que sucedera enquanto estávamos “fugidos”. Hoje sinto que foi uma excelente ideia o deixar terra pelo meio enquanto se dava tempo para que as coisas evoluíssem.

E mal nos despedimos fui procurar o carro e ligar para ti. Como não se pode falar pelo telefone enquanto se conduz, vou desligar e sigo para casa. Ali te conterei do que soube. Não me demorarei.

- Não tenhas pressa, conduz com cuidado, para podermos trocar novidades sem ser no hospital. Também tenho algumas coisas para relatar. Beijinho.

- Cheguei! E há qualquer coisa de novo nesta entrada. Seja nos canteiros ou nos arbustos e árvores. Olá! Estavas à janela para me ver chegar?

- Com certeza. O que pensavas, que estava na palheta com alguma vizinha? Nem sequer vizinhos temos! Entra e refresca-te, um duche e mudar de roupa fazia-te bem. E eu estarei ao pé de ti para te adorar!Antes vou dizer que nos preparem um lanche ajantarado para daqui a hora e meia, duas horas, pelo menos para mim, pois a tua barriga mostra bem que o almoço não foi de passar fome.

- Além de dona de casa e esposa cuidadosa saíste uma fiteira. Essa de me adorares é de força. Não sei se é para me rir ou para me aborrecer; para mais porque até hoje nunca me mimaste com uma pirosice deste teor.

- Apeteceu-me brincar contigo, e já sabia que pensas ser tu, em exclusividade, que tens alvará para brincadeiras. Mas, se preferes, entremos na real, como dizem os brasucas. E antes de chegar ao prato forte vou dar as novas caseiras.

Encontrei a casa não só limpa mas brilhante como as alfaias do altar. O pessoal feminino deve ter-se esmerado para nos mostrar que valem o que lhes pagamos, e possivelmente mais. Não penso que nos tempos da tua falecida esposa Constança a casa estivesse mais cuidada do que hoje. Do jardim já não aposto, pois desde início que ouvi que a mãe dos teus filhos (estes que conheço, caso não haja outros por aí...) era muito dedicada e conhecedora da jardinagem. Mesmo assim, e por sua conta. Quiçá recordando que vira anos atrás, o Ernesto fez um grande esforço para dar um melhor visual, pois parece que enquanto estavas “solteiro” por viuvez, pouco te ralaste com a parcela de jardim em frente da mansão.

- Mentiria se dissesse que não reparei, ainda no carro, de que havia coisas novas ou com cuidados recentes no jardim fronteiro. Mas daí a merecer um alarido parece um pouco exagerado.

- Podias ter aguardado que eu terminasse a minha página caseira. O que mais me sensibilizou foi ver que, também o Ernesto, com algum homem avulso para ajudar, limpou um bom talhão nas traseiras e preparou canteiros para criar uma horta que abastecesse a cozinha da casa. E já tem alguns pés a crescer. Temos alfaces, pimentos, tomateiros, pés de cebolas e couves de diversas variedades: galega para crescer em altura e fornecer folhas para o caldo verde, portuguesa para cozer com bacalhau ou no cozido, couve-flor, brócolos e couve para grelos. Vou mostrar-te tudo isto, e também os canteiros já com sementes de cenouras e rabanetes a despontar. Diz que os alhos terão que se plantar mais adiante, quando passar o calor. Sei lá, parece que temos hortelão. E eu estava ansiosa para isso, embora nunca te falei neste desejo.

E agora o assunto de peso. Há poucos dias colocaram outro cadáver no mesmo local. Não te quis dizer isso de entrada para não estragar o momento. E nem imaginas como está o pessoal, o Vale na generalidade e eu mesma, que tenho sentido tremeliques pelo corpo.

- Calma Luísa. Esta era uma das coisas que o Cardoso não me quis contar e guardou para o Ortega, que explicou-me tudo em pormenor. Contar esta novidade como mereces não é coisa de se fazer aqui, em pé, a frio. Mas creio que as preocupações maiores já passaram. Para já adianto-te que este derradeiro morto é um dos bandidos que mataram os dois mortos anteriores. Ao todo eram quatro, e foram identificados rapidamente graças às descrições que a polícia foi juntando, e as fichas da Interpol e da Polícia, que os tinha sob uma vigilância pouco intensa, pelo que se viu das andanças. Tanto aqui como no local onde se deu a tal festa que eu imaginei ser a base dos sucessos, e que quase acertei no alvo. Fiquei perto, pelo que me contaram hoje.
- Dois morrerem, ou foram mortos enquanto estávamos fora, e este derradeiro deve ter sido sacrificado pelos outros membros da quadrilha quando já viajávamos de regresso. Não me perguntes mais detalhes agora. Depois, com calma, te contarei o filme juntando as peças que vieram a meu conhecimento.

E dos teus negócios, não tens nada para me contar? Aposto que nos dois salões se noticiaram novidades. Todos os dias há motivos de fofoquices entre mulheres. E se me deres um aperitivo do que foi mais saboroso?

- Está bem. Teremos um serão longo e entretido, que nos deixará dormir sossegado, a fazer juízo pelo que contas. Dos meus lados, e não adianto nada, soube que se deu uma cena de tiros, de faca e alguidar, em casa de um personagem da política local. Não houve mortes, mas alguém ficou com mais um furo onde as costas mudam de nome. Esta te fará rir.

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