quinta-feira, 20 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap. 17



Mudanças de planos. As suspeitas confirmam-se

- Luísa? Sou o pai, ouves?

- Sim, perfeitamente. Há novidade? Bem, além do que vem nos jornais sobre o cadáver, ou restos dele, que te colocaram no terreno?

- E que há mesmo. E temos que falar. Pensava em vir até Lisboa amanhã, no comboio mais rápido que conseguir apanhar e encontrar-me com os dois. Não sei bem o horário, mas, caso estiverem livres almoçaríamos juntos. Liga ao Bruno e combinem. Depois dizes-me. E eu, logo que possa, darei a hora de chegada à capital do Reino.

- Mas o assunto é grave?

- Bem, grave de morrer não, mas acumularam-se vários acontecimentos que alteraram, profundamente, os planos que tinha em mente. Mas falaremos nisso enquanto recuperar-mos forças num sítio calmo e com boa cozinha. Nisto, e noutras coisas, terão que me dar uma ajudinha.

- Boa tarde, menina Alice. Pode anunciar a minha visita aos doutores Miranda e Reis? Sabiam que eu vinha hoje, mas sem hora marcada. Obrigado.

- Os doutores estão à sua espera. Ou melhor, já estão mesmo aqui.

- Caros amigos Vítor e Raul. Para já agradeço a prontidão em me atender e, certamente, que terão sabido alguma coisa acerca do tema que relatei ao Raul, concretamente respeitante à prenda que alguém deixou no terreno que tenho no Vale.

- Mas entremos no gabinete das reuniões, estaremos mais cómodos e aproveitaremos para degustar uma aguardente velhíssima. A Alice não nos passe telefonemas nem de notícias de visitas, se faz favor.

- Podem estar tranquilos que por aqui não passará nem que fosse a judiciária em peso.

- Pois, de facto, caro Zé, tiveste faro ao suspeitar de que este morto trazia uma história agarrada ao esqueleto. Conta tu, Vítor, que tens mais arte na dialéctica.

- Para já, o assunto é daqueles que afectam muitos graúdos e alguns desgraçados da raia miúda que são usados para gáudio. Antes de avançar garanto, pelo que soube, que será um daqueles temas que ficarão guardados a sete chaves.

Lembras daquela barracada dos Ballet Rose que aconteceram no tempo do Salazar e que só foi conhecido pelos que se moviam pelo meio das altas esferas? Pois, este de agora tem muitas semelhanças, se bem que penso consegue ter atingido níveis mais escabrosos.

- Posso dar a minha versão, que só tem base na minha fértil imaginação?

- Teremos todo o gosto em te ouvir, e quase a certeza de que pouco errarás. Mesmo assim interromperemos se for caso disso.

- Pois imagino que estes amantes das emoções fortes, especialmente no campo da sexualidade “perversa” e clandestina, devem ter uns locais próprios donde se possam espairecer sem dar muito nas vistas. E, seguindo nesta hipótese, numa orgia que deve ter acontecido nalguma mansão da serra, seja no Buçaco ou Caramulo, sem descurar a possibilidade de uma casa solarenga, um pouco afastada das estradas mais concorridas, e num raio entre os 50 e máximo 100 km do meu terreno. Houve um dia em que as doideiras deram bronca.

Ou desconfiaram daquele artista travesti. Fosse porque não gostou dos tratamentos e avisou que os denunciaria ou, mais provável, que exigisse uma maquia extra, e graúda, para se calar.

- É possível que a razão de o matarem fosse esta, ou outra equivalente. Num ambiente de bebedeiras, drogas duras e muito sexo de todo género, é fácil que alguém descarrile e cometa uma loucura que é imperioso abafar. Daí que surgisse a necessidade não só de arrumar o corpo do delito, como se diz nos romances amarelos, que já décadas deixaram de ter esta cor na capa, e também de dar exemplo de que é perigoso refilar com certa gente.

- E como é que chegaste a esta teoria tão elaborada?

- Por pura casualidade. Um mês atrás, mais coisa menos coisa, pus a mansão do Vale à venda, e um dos primeiros interessados que por lá apareceu era um tipo com má pinta, certamente que um intermediário, que principalmente queria saber se havia bastantes salões e quartos com casa de banho privativa, embora dissesse que o espaço era amplo suficiente para poder equipar devidamente os quartos que não cumprissem esta exigência.

O blá-blá-blá do fulano indicou-me que pensariam comprar a propriedade para lá instalar uma casa de encontros de primeiro grau para “gente grada e fina”. Além disso ficou muito agradado com a possibilidade de poderem utilizar a adega anexa, hoje desactivada, para ser usada como garagem fechada e assim, digo eu, retirar da vista de curiosos indesejados, os carros dos clientes.

Ao ver aquele morto de imediato suspeitei de ser uma execução ou uma morte acidental, mas esquisita, dado que o colocaram nu e sem elementos de identificação imediata. E quando apareceu o nome do morto, o meu caseiro me disse que podia ser a de um conhecido travesti, frequentador dos carnavais como bailarina brasileira feita à pressa, a minha mente, fértil e dada à malandrice, elaborou este esquema que vos relatei.

- A grandes rasgos acertaste em cheio. Só será necessário acertar alguns detalhes. Importantes mas, como dissemos de início, sigilosos quanto baste para não nos atrevermos a divulgar à janela.

Continua



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