sexta-feira, 14 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap 15



Inicio da ida até Coimbra. Notariado. E um cheiro acerca do morto.

Isabel? Estou mesmo a chegar. Se estiveres com as tuas coisas à porta é só parar, carregar e partir para a aventura. Demorei-me mais do previsto, mas sabes da minha mania em querer tocar muitos instrumentos ao mesmo tempo. Já te estou a ver na porta de casa. Entra enquanto eu meto a bagagem na mala. Beijinhos sem dar nas vistas. E uma boa notícia: consegui a suite do Astória!. Tive que dizer ao recepcionista que logo falaríamos pessoalmente. Entendes? É a dica para uma compensação por ele ter dito, seria verdade ou mentira, que aquele quarto já estava “quase” comprometido com outro cliente -duvido que seja verdade, pois que estes indivíduos são melosos e trafulhas- o qual vinha de Lisboa, mas que queria passar primeiro por Fátima, e podia chegar tarde. Propus-lhe que o colocasse num quarto para as traseiras, para que assim se penitenciasse, ou será que o fulano imagina que só com uma ida ao santuário e colocar uma velinha está tudo certo?

Espera um instante, pois posso esquecer de dar recado lá para casa

- Dona Idalina? Está-me a ouvir bem? 
- Estou sim Senhor Doutor. 

- É que a quero avisar de que hoje, de facto, não jantamos no Vale, nem tampouco dormiremos em casa, pois surgiu um imprevisto no Porto e o mais certo é que tenha que fazer noite por lá. 

- Esteja descansado o Doutor, que não há problema nenhum. Nem sequer são horas de começar a preparar o jantar. Tenham uma boa viagem.

Vamos para o Porto? Que bom. Nas revistas que compro dizem, todas, todas sem excepção, que a Invicta está na moda, disputa com Lisboa o topo da procura. E há bastante tempo que não vamos até lá. 

- Aguenta o gado, Isabelinha! O que me ouviste dizer é quase tudo uma treta. Foi só para descansar a Dona Idalina, pois de outro modo já antes do sol posto ficaria “com fezes” como ela diz, esperando ver o carro chegar. Quanto ao Porto há muitos dias disponíveis (se entretanto não for preso pela PJ) Terás que te preparar para deixar o salão em regime de controle remoto, pois já tenho planos para gastar muita gasolina contigo. Mas, para que não fiques “desilodida” podes contar com o almoço na Bairrada.

Depois iremos direitos a Coimbra. Deixaremos a bagagem no hotel; amaremos numa sessão de mâtiné, sem medo de cortes de digestão, pois que os dois estamos habituados a tomar banho, por assim dizer, a qualquer hora e mesmo com o estômago carregado. A seguir e antes que o comércio abra, passaremos pelo notário a fim de combinar o nosso casório. Entretanto as lojas vão abrir e temos umas compras a fazer. Mais a seguir já tenho visita combinada, entre as quatro e as cinco, com dois antigos colegas que terminaram os seus cursos de direito e que, desde então tratam dos meus assuntos mais bicudos. Será um encontro sem testemunhas. Isso significa que ficarás por tua conta durante entre meia hora e hora e meia. Depende de estarem pouco atarefados ou com muita gana de querer matar saudades. Conto com que estejas com o ouvido atento à minha chamada. Voltaremos ao nosso baile mandado.

E, com tanta conversa, em verdade tu pouco disseste, mas sabes que trago os discursos muito compactos e depois os desbobino sem respirar. Mas, como ia dizendo, ou tentava dizer antes de me espalhar. Já chegamos à zona da Bairrada. Vamos para e um restaurante que conheço de longa data: o Ernesto dos Leitões, Costa no seu BI. Sem ser dos mais badalados pelas revistas, nas páginas de recomendações, eu o coloco no topo quanto a comida e espumoso da região. 

- Agora sou eu a falar, pouco mas atenta à jogada. Sabendo que tu não ligas muito às revistas que sou obrigada a ter nas salas de espera do meu estabelecimento de beleza, fiquei com a ideia de que estavas a meter-me comigo, imaginando que eu ligava aos conselhos que publicam. Não sou tão burra assim, e sei que estes avisos são pagos, que são publicidade mascarada, e que em muitas ocasiões a realidade não corresponde totalmente ao que apregoam. Mas, como tu não tens uma agência de publicidade, acredito na tua classificação.

Boa tarde Doutor. Acompanhe-me à mesa que tenho sempre reservada para os clientes mais especiais. Poderão apreciar não só o que vier da cozinha como o movimento da sala, sem serem importunados, podendo falar à vontade. Traz uma companhia muito simpática. 

- É, ou vai ser dentro de pouco, a minha esposa oficial, e sei que a vai tratar como merece. Como está o leitão neste momento? Preferimos aguardar a que esteja no ponto, entretendo a fome com umas lascas de presunto e um queijo artesanal. Nem era preciso que me dissesse isso; podia ter ficado ofendido se não reparasse no seu olhar, maroto, enquanto se me dirigia. Trago já o espumoso fresco ou prefere um aperitivo? 

- Optaremos pelos produtos da terra, pois que não há melhor aperitivo do que um BOM ESPUMOSO natural vindo de um produtor sabedor do ofício.

- O que me contas a respeito de visitares os teus antigos colegas? Será que tens as autoridades à perna? 

- Faz décadas, desde o tempo do meu avô, que as ditas autoridades nos seguem. Mas nunca chegamos a vias de processo. Tudo é questão de saber lidar com os responsáveis de topo; pedir-lhes conselho, mais ou menos disfarçadamente, e os gratificar de vez em quando. Claro que os que estão no terreno, e que molestam como moscas, também tem que ser bem tratados. Arranjam-se sempre ocasiões para entregar, "por baixo da mesa" uns envelopes com algum recheio. É um jogo que sempre existiu, desde o tempo dos fenícios. Poderia contar-te muitas histórias, mas o local nem a ocasião são propícios. Fica para outro dia, com a cabeça na almofada ou ao pé da lareira.

Mesmo assim, e já que perguntas. Sabendo que Coimbra, na zona centro do País, é um “antro de perdição” (como são todos, incluídas as aldeias, tudo na sua medida) e desconfiando da identidade do morto que me ofereceram, vou tentar saber mais alguma coisa, sem esperar pelas notíias do Correio, que nem sempre estão correctas. Mesmo antes de o feitor me dar a dica que te contei, aquele corpo fez-me torcer o nariz. Não pelo cheiro, pois coitado já nem sequer cheirava a cadáver, mas pela posição em que o encontraram e o pouco cuidado que mostraram no que cabe a esconder. Aquilo dava a ideia de ser uma execução e, ao mesmo tempo, um aviso à navegação

- Qual navegação, no meio dos matos? 

- Isabel, ainda mal bebericaste e já ficas com os miolos em férias? Esta frase é uma das frases que dizem mais do que se ouve ou lê. Imagino que queriam avisar, alertar, ameaçar, a pessoas que se lhes tornaram suspeitos, o que os desagradaram. Pode existir um grupo de gente que se rege por fora das normas que os outros entendem ser correctas e vigentes. Aqui não te posso dar mais pormenores. Tem paciência. Mais logo e se os meus amigos me derem as informações que lhes pedi, poderemos brincar aos detectives. 

- Como nos romances policiais, de que tanto gosto, e nas séries da TV? Formidável Zé!. Mal posso esperar.


- Vamos ao ataque do leitão, que o amigo Ernesto já traz a travessa com aquele grande sorrido que sempre me dedica e que, a partir de agora, também te mostrará.

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