domingo, 9 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE Cap. 12



Quem seria a pessoa que habitou naquele corpo morto ?

Já passaram practicamente dois dias após a descoberta do corpo abandonado nos limites do meu terreno. Da minha parte só agi em função das circunstância actuais, que sem ser com espaventos limitavam os meus movimentos Era uma decisão inevitável avisar aos que estavam decididos a vir até Vale do Pito, assim como aos que por mim foram ou como é o caso dos meus filhos, dizendo que tudo ficava em suspenso, pelo menos até que as investigações em curso me notificarem que posso continuar, sem reservas, com os meus projectos. De imediato ao alarme, e antes de que me viessem com “ordens superiores” enviei o meu feitor Ernesto Garapato, com a sua equipa, para o lado oposto do local que os levou aos restos mortais.

Dos noticiários televisivos, que, tal como o jornal que dizem ser o que detêm a maior tiragem neste País, e que partilha, inclusive com um canal próprio, a distribuição de fofoquices, pouco ou nada pude saber que sirva para avançar nesta situação, insólita por aqui. Pelo que se subentende os organismos policiais e de investigação ainda não colocaram muita coisa em cima da mesa para que os necrófagos se alimentem. Mas tal não tardará, se procederem como lhes é habitual, a dar uma dicas por baixo da mesa e com isso incitar aos possíveis conhecedores de factos relevantes a que mostrem o seu desejo de ser ouvidos e conhecidos. É um esquema velho, embora obrigue a um trabalho exaustivo para poder separar aquilo que pode ser relevante das simples conjeturas de mentes fervilhantes.

Fartei-me de rir, a sós e sem enviar gargalhadas para o ar, ao recordar o ar maroto e, simultaneamente de desprezo, com que o chefe do grupo de investigadores se despediu de mim. Sem me dizer na cara que eu pensava ser mais astuto e conhecedor do que eles, e ter mostrado a intenção de explicar a missa ao vigário. Levei-os ao canto que queria. A partir daquele momento era provável que me deixassem tranquilo. Por enquanto ainda andam por aí, tirando mais fotografias e esperando o momento de chegar à conclusão de que naquele lugar não há mais nada que pescar, E só então tirarão as fitas, tão bonitas, que nos colocam numa ribalta de popularidade.

Os polícias da judiciária, que se converteram em donos exclusivos deste assunto, andaram pelas casas da aldeia, principalmente nos cafés e outros estabelecimentos comerciais, fazendo as perguntas óbvias, mas sem jamais se descaírem a responder caso se atrevessem a perguntar. Até agora deixaram sair, sempre através dos meios de comunicação social, que se tratava de um homem, com idade entre os 25 e 35 anos, e que pelos sinais encontrados nos despojos admite-se que foi alvo de crime violento.

A Isabel tem estado muito nervosa com esta novidade, e insiste em que chegou o momento de nos assumir como namorados. Não fala em casar, e menos de véu e grinalda pois ela é respeitadora do simbolismo que sempre esteve anexo a uma noiva vestida de branco. 
- E com estes temas de índole pessoal já esquecia de te contar que, tal vez uma hora antes de chegares, apareceram dois sujeitos que se identificaram como sendo da judiciária -andam sempre aos pares como os Hélder?- e, sem serem demasiado inconvenientes, fizeram algumas perguntas, a teu respeito, das que sabiam as respostas. Só te digo que sabem mais das nossas vidas do que imaginamos. 
- Não te apoquentes. A polícia é assim, e só te digo que para evitar que metam demasiado o nariz temos que ser mais vividos e manhosos do que eles. A receita eficaz é dar “milho aos pombos”, ou seja, muitas banalidades com aspecto de serem coisas importantes mas que, no fundo, como dizemos na contabilidade, é deixar alguma palha para se entreterem, e com isso atafulhar o processo individual. Ficam satisfeitos e até pode ser que soltem sonoros arrotos.
- Não consegues tratar esta língua? Deves estar convencido de que ainda es un estudante estroina lá nas Coimbras, que tantas saudades te deixaram.

De positivo a Isabel propôs, com ar de não ser discutível, que desta feita me acompanharia à casa de Vale do Pito, e ficarmos ali durante uns dias, pelo menos ao longo desta semana. Sem me deixar respirar acrescentou que já tinha distribuído as marcações das clientes, e recordar as tarefas a cumprir entre as suas funcionárias, deixando a Ivone -que conheço-, como encarregada geral, com autorização de telefonar sempre que entender que carece da sua opinião para decidir. E terminou afirmando que já tinha o seu rodinhas preparado. Aquele com que me acompanhou a Lançarote, nas Canárias, na fase em que estava encaprichada em ver os locais por donde andou o célebre e mal encarado Saramago, de alcunha ou pseudónimo por ele escolhido.

Nestes dias de descanso eu já fui preparando, sem a escrever, a minha linha de investigação pessoal. Tenho um palpite de que será, ou seria, o morto que me ofereceram sem passar cartão na entrega. Quero esperar a que os serviços técnicos da PJ nos anunciem que, graças aos seus especialistas, já identificaram, pela ficha dental, de quem se trata. Ou seja, aqueles restos já não serão de um desconhecido. Falta descobrirem o resto. Eu, atando algumas pontas soltas, creio que sei de quem se trata, pelo menos de nome, pois que não reordo de o ter visto e menos de ter falado com ele. Mas posso estar enganadao e ter o tal, cujo nome ianda não transpirou, no meu arquivo morto, à espera de uma faisca que o traga aos meus olhos interiores, numa visão.

É quase certo que terei que dar uma saltada a Coimbra e conversar com antigos colegas e companheiros de viagem no intuito de me confirmarem, ou não, aquilo que eu magiquei. Entretanto não me escapo de aceitar a companhia, imposta, de Isabel até a mansão que não conhece. Vai ser uma surpresa, fingida por quase todos, pois que o desporto geral de especular na vida de cada um já deve ter colocado, na fila de espera, o facto inevitável de que eu apareça com a estrela dos salões de beleza.

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