quarta-feira, 12 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - capí 14



Isabel, eu ainda me demoro uns minutos, não muitos. Mas queria recordar, caso fosse necessário, que temos combinado partir em direcção a Coimbra, almoçar no caminho ou na cidade, e depois passear tranquilamente, se bem que eu tentarei encontrar alguns amigos meus, antigos colegas de estudos ou mais seriamente de farras, para ver se ganho avanço aos profissionais da PJ, sem ser uma corrida declarada. 

- Tudo bem, eu já estava a par destes teus projectos, sempre complicados, como é teu hábito. Mas suponho que telefonaste por outros motivos.

- Sempre estás com um olho no burro e outro na estrada. Ainda bem que não dormes na formatura; mas se não fosses assim já teríamos acabado muito tempo atrás. Retomando os planos. Tanto podemos ir até à minha casa para dormir como ficar a noite em Coimbra, num bom hotel, e antes de parir amanhã dar um salto ao Registo Civil. Ah! Que cabeça a minha! Desculpa. Baralhei a ordem das coisas. Uma vergonha! QUERES CASAR COMIGO? 

- Tu és um caso sério, para não te chamar de burro. O que esperavas para fazer um pedido formal? Com anel e tudo! Lá porque fazemos Ó Ó juntos desde uns anos a esta parte, devias dar mais atenção ao que uma dama valoriza. Se esta situação me acontecesse vinte anos atrás, com outro sujeito certamente pois nem te conhecia naquela época, eu o mandava às urtigas, ou mais adequadamente à merda. Sabes? Estavas e estás convencido de que eu estou presa pelo beicinho. NÃO ABUSES ZÉ MARAVILHAS! Toma e embrulha, desta feita levas com a alcunha, ou pensavas que não a conhecia?

- Tens razão. como sempre. Ponho-me de joelhos, -simbolicamente falando, pois que estou no carro desafiando a GNR com o telemóvel- não só para pedir a tua mão, pois a outra parte essencial do teu corpo já me foi dada com a devida, ou não devida, antecedência, mas também como sinal de arrependimento sincero. 

- Deixa-te de histórias, e conta o resto! 

- Queria avisar que seria bom preparar, além das roupas de senhora e artigos de beleza, que já deves ter arrumado no teu rodinhas, um saco com roupas informais, e sapatos rasos mas fechados, próprios para andar no campo, para percorrer a propriedade e fazer-te a entrega, simbólica e efectiva, da zona de jardim rústico que rodeia o casarão. 

- E será que estás convencido de que só tu é que sabes planificar? Tudo isto que propões já foi seleccionado e está num saco próprio, que viajara juntamente com o rodinhas, mas que não subirá ao quarto do hotel. E mais umas surpresas que aparecerão nos momentos adequados.

- Falando em hotel, eu gostaria de ficar no Astória, que não é novo mas foi restaurado. É aquele que está numa esquina bicuda junto ao Mondego e com um quarto estupendo neste bico, de donde se vê a ponte de Santa Clara e a Praça da portagem. Telefona para lá, já! E teima para que nos reservem este quarto. Não aceito outro! Tens que te habituar a que vou mandar. Isto de casar de papel passado tem as suas vantagens e obrigações. E desligo, que tenho outras coisas para tratar. Não demores, malandro!

- Estou feito! Ainda não fomos ao cartório e já a ovelha passou a fera. Mas terei que aplicar as técnicas próprias para que as coisas funcionem nos conformes.

Uma vistoria aos trabalhos

Senhor Ernesto, podemos dar uma volta aos resultados da empreitada? 

- Com certeza Doutor. 

- Já lhe disse, em várias ocasiões, que se em Coimbra eu fui, e continuo a ser, tratado por Doutor é mais por um costume da terra, que neste aspecto é tão aldeia como aqui o Vale, e não porque tenha direito legal a este tratamento. Recordo ter explicado que andei nas faculdades, em três, até que apesar de sempre ter passado o ano, decidi que aquilo não se ajustava ao que eu pretendia fazer no futuro. Também lhe contei que, em Portugal, há muitos doutores e engenheiros que não são tais. Uns nem sequer chegaram a licenciados. Mas a nossa sociedade gosta destes tratamentos, uns de os receber e outros de os oferecer.

Enquanto conversávamos fui vendo que, de facto, e como esperava de si, sendo o orientador, fizeram um bom trabalho. E as contas? Tenho que pagar o serviço, nem que isso implique hipotecar a propriedade. 

- O patrão não diga uma coisa dessas, que fico arrepiado. Verá que não irá para pobre, e o dono da máquina ficou satisfeito por o termos chamado, pois que conta poder apresentar o que fez como referência, se não se importar. 

- Tudo isso é agradável de ouvir. Mas, insisto, e as contas? 

- Amanhã terei tudo arrumado e pronto para si.

- Outro filme, amigo e feitor Ernesto Carrapato: Já lhe disse que penso casar? Depois de tantos anos de viuvez creio que não ofenderei ninguém, nem os filhos, crescidos e já voando soltos, poderão dizer que lhes ponho uma madrasta pela frente. 

- Se o patrão não leva a mal, entendo que esta sua decisão só peca por ter demorado demasiado. Uma esposa faz sempre falta numa casa e, se for a senhora que penso, tem fama de ser pessoa de respeito, trabalhadora e simpática. 

- Credo, como vocês exclamam. Nestas terras não se pode dar um traque sem que logo todo o pessoal saiba.

- E postos a saber. Por acaso alguma vez ouviu falar deste Carlos Valente que nos deixaram de prenda no fundo da propriedade? 
- Se for aquele que se falava desde que ele era moço, pois que é de uma terra perto do Vale, mais virada para Penacova do que destas bandas, dizia-se que tinha maneirinhas. Não sei se o patrão entende. E que nos carnavais da Mealhada sempre se mascarava de vedeta brasileira, pintalgado a preceito, com pestanas e mamas postiças, dançando o samba com muita habilidade e requebros. Ninguém diria que era um rapaz. Mas pode ser que não seja este Carlos. Aquele que conto tanto lhe chamavam de Carlitos como de Carlota. Mas, como disse, pode muito bem ser que o morto seja outro, pois daquele jamais ouvi nomear os apelidos de família. Sabe que sempre se disse que Marias há muitas, e Carlos deve haver menos mas bastantes.


Antes que esqueça. Quando terminarem de arrumar esta empreitada queria que, com o rapaz que o ajuda quando é preciso, darem uma olhadela, reparando estragos se os houver, na conduta que traz água da serra até o depósito das regas. Limpar este tanque e verificar se a bomba e os canos estão a funcionar como deve ser. É que, já que a nova esposa vai ocupar, pelo menos legalmente, o lugar da falecida, mas não esquecida, Dona Constança, que tinha a exclusividade na orientação, escolha, manutenção e disposição das verduras da zona ajardinada, sempre em estilo rústico, sem canteiros, vou dar esta incumbência à Dona Isabel. Será com esta senhora que terá que se orientar. A sua ajuda sempre será bem recebida. 

- Eu me encarregarei disso. Seria uma surpresa de viermos a saber que esta nova patroa percebe de plantas, sem ser aquela margarina dos anúncios.

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