terça-feira, 11 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap. 13



Já deram nome ao morto. Vamos casar.

Fui tomar o meu frugal mata-bicho ao café, como de costume, e ali mesmo folheei o jornal das notícias escabrosas, aproveitando que o dono da casa o coloca à disposição da excelentíssima clientela. Como esperava, logo na capa vinha a identificação do cadáver de Vale do Pito. Nunca esta aldeia terá sido tão referida como vai ser com este achado. Eu bem tentei colocar a terrinha no mapa com alguma acção no âmbito do erotismo escandaloso. Mas mataram a excelente ideia! Uma morte anunciada.

Escrevem no periódico, (que de facto é um jornal dado que aparece, sem falta, quotidianamente). Foi, como se previa, por meio dos dentes que se encontrou a identidade, pois que conseguir impressões dactilares naqueles restos, mais do que roídos, era muito difícil, ou mesmo impraticável. As técnicas mais sofisticadas de ADN e outras ainda mais modernas, dados os custos que implicam, reservam-se para casos mais bicudos. Usando uma linguagem habitual nestes comunicados, a identificação, que correu a cargo dos técnicos que se encontram nos quadros das faculdades de ciências medicas e técnicas avançadas de Coimbra, onde se misturam laboratórios clássicos, a cromatografia e os espectros de diferentes comprimentos de onda (esta saiu-me excessivamente pretensiosa) chegaram a encontrar correspondência, após intensa pesquisa (bateram às postas dos dentistas da praça, pensando que seria necessário ir até os do Porto, Aveiro, Viseu e outras zonas populosas. Tiveram sorte. No terceiro consultório estava a ficha daquela dentadura) Não havia a mais mínima possibilidade de engano, os restos mortais pertenciam, ou pertenceram, a um tal de Carlos Valente dos Santos. E nada mais de importância dizem. O resto são hipóteses, repetidas até enjoar, dos jornalistas “no terreno”. Já vimos que o que não sabem, inventam, descaradamente e sem receio de ser repreendidos pois são cientes de que da edição seguinte haverá mais lixo para entreter.

Antes de almoçar, depois de dar uma inspecção aos trabalhos no terreno, irei até a Vila e, acompanhado pela Isabel, avançaremos para Coimbra donde tenho a intenção de procurar alguns “rapazes da minha criação” com o propósito de tirar alguns nabos da púcara. É que este morto deixou-me um cheiro muito intenso, e não de cadaverina propriamente dita. Ainda não decidi onde almoçar. Dependerá das horas e da vontade de comer que se consiga resistir.

A Isabel sei que gosta de ir até à Bairrada, por causa do leitão, que é um petisco difícil de rejeitar, mas que traz com ele uma cativante gordura que depois se incorpora e custa a largar. Eu, prefiro ir até à baixa coimbrã e abancar num dos restaurantes ditos populares, mas escolhido por mim, pois que muitos já se abastardaram para turistas ignorantes. Aquele ambiente informal é largamente compensado chamando a todos de doutor, incluindo os caloiros não praxados. Faz bem ao meu ego aceitar um pouco de toleima sem valor.

- Então senhor Ernesto, como vai o serviço. Deve estar quase pronto, se não me engano. 
- Boa tarde Senhor Maragato. Pois é como diz. Mesmo com o transtorno que nos causou aquele morto, o trabalho correu bastante bem, A lembrança que o patrão teve de contratar uma máquina foi de uma grande ajuda. Vale bem o que custaram as horas que aqui trabalharam. E depois, espalhar aquelas aparas nas terras foi o melhor. Creio que até amanhã ao almoço teremos tudo terminado. Só faltará que o homem das lenhas apareça para carregar os troncos. Mas este trabalho será por nossa conta, já que o patrão nos ofereceu a lenha. Nós decidimos que parte das horas gastas com as árvores não lhe seriam apresentadas. Como por cá se diz uma mão lava a outra.

Assim chegamos ao momento em que tenho que abrir os cordões da bolsa. 
- Se, quando terminar o dia o amigo Garrapato tiver tempo e paciência para preparar um apontamento das horas de pessoal, e suas, pois que esta tarefa é um extra que não conta na mensalidade habitual, mais também o que devo ao dono da máquina, de manhã tratarei de levantar dinheiro no banco da vila e fechar este assunto da melhor maneira, Certamente com a satisfacção de todos, - O patrão não se apoquente, o pessoal confia em si, e se não receber amanhã será no dia seguinte. Esteja descansado.

- Bom dia, dona Idalina, bons olhos a vejam, que são os meus! Como vai? Suponho que com estes calores o reumatismo não a deve ter incomodado. 
- O doutor está muito enganado. As noites tem estado frescas e as madrugadas nem lhe digo, estas diferenças de temperatura e mais o nevoeiro que cai do Buçaco dão cabo de mim. Mas tenho que aguentar, que a vida nos traz sempre sacrifícios para poder alcançar a glória eterna ao lado de Jesus (esta mulher tem arrancadas do século XVIII. É assim que os poderosos gostam de ter o povo, e não digo mais para não ofender)

- Pois desta vez tenho novidades. Vou convidar a minha namorada a passar uns dias aqui, na casa de família. Creio que um luto de mais de quinze anos é suficiente, e um homem não é de ferro. Digo-lhe, que eu sei, nem todos os padres, frades e demais elementos da igreja são tão respeitadores e castos como eu tenho sido. 
- Doutor, não seja exagerado. Nem oito nem oitenta. Todos sabemos que tem uma “namorada” na Vila, e ninguém o critica por isso. E agora diga-me. Onde dormirão? Pois dou como certo que não ficarão em quartos separados, seria um despropósito sem jeito. Cá por mim, que conheci e estimei a Dona Constança -que Deus tenha na sua Glória- não entendo que a estas alturas, em que até as crianças sabem mais destas coisas do que eu, se justifique não usarem a alcova principal.

- Tudo depende de como encarar isso a noiva que trarei. Ela também tem as suas manias e preceitos, como pode imaginar sabendo o que a dona Idalina sabe a nosso respeito, e que até hoje nunca pisou esta casa. Pelo sim pelo não tenha este quarto e outro semelhante preparado. Não se preocupe pelo jantar de hoje; chegaremos servidos e amanhã começaremos a lhe dar trabalho a partir do pequeno almoço. Sugiro, se assim entender, que mande vir aquela moça da aldeia que a tem ajudado quando é necessário, especialmente nas limpezas e polimento de chão e peças de valor. Mais uma coisa. Conforme correrem as contas com o pessoal, gostaria de oferecer uma adiafa de agradecimento. Nem sei quantos serão para almoçar, mas pode contar, além de os dois da casa -pois o mais provável é que casemos em breve- trago na cabeça de convidar o presidente da junta e mais dois ou três elementos da equipa dele. Caso esta ideia, maluca, seguir em frente já combinaremos o dia e a ementa, mas a dona Idalina sabe perfeitamente do que este pessoal gosta para encher o papo.


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