VAI
VENDER A MANSÃO?
Que
me diz deste tinto? Uma excelente pomada, usando um termo do tempo do
meu pai. E o presunto? A cura deste produtor, ou dos produtores
espanhóis de primeira linha, é excelente. Observei como sabe fatiar
em doses muito estreitas e finas, com aquela faca longa e delgada.
Será que este corte ajuda quanto ao paladar? Dizem que sim, que ao
ser em pequenas doses e muito finas, quase transparentes, a carne
oxigena-se e liberta o seu aroma. Mas não lhe garanto que isso seja
de facto assim. Só sei dizer que esta peça é muito apaladada e que
com a ajuda do vinho nos tornamos sibaritas(1) sem ser conscientes de
tal. De facto nem as avelãs torradas, de que sou louco apaixonado,
conseguem neutralizar a qualidade tanto do vinho como do presunto.
E
agora, Senhor Presidente, quer dar uma volta à casa? Hoje não posso
aceitar. Tenho uma marcação com o Secretário da Câmara e não
quero que fique à minha espera. Deve vir com o mandado de verificar
que, nesta freguesia, se estão portando nos tais conformes, depois
da barracada em que se estavam a meter. Sem que entendessem que
aquilo era só fogo de aparas. Dito de outra forma. Que perderam as
veleidades de infringir as regras dos bons costumes. É bem possível
que venha para isso, mesmo que de entrada saque de um papel qualquer,
já conhecido e sem importância, para disfarçar. Estes emproados de
casaco e gravata estão, sempre, convencidos de que os das aldeias e
lugares são uma espécie diferente, ao nível dos pretos das
sanzalas. Uma cambada de estúpidos que não merecem ser respeitados.
É como diz, tanto assim que de se mirarem ao espelho lhes acontece
como ao deus grego Narciso, que olhando-se refletido na água de um
lago se enamorou de si mesmo.
Não
lhe gabo a sorte. Estes cargos políticos, e quanto mais dependentes
de chefias pior, devem ser difíceis de aturar para quem sinta que já
se devia ter terminado com hábitos do tempo do Salazar, e não digo
da outra senhora porque não aceito estes eufemismos. A constituição
da República diz, preto no branco, num
artigo qualquer sem importância uma
vez que nunca é cumprido, que é a-confessional, ou seja, que não
deve dar tratamentos de favor nem aceitar imposições por nenhuma
igreja. É o que se vê. Por estas e outras razões, as minhas
convicções, se bem que com uma amplitude notável, não aceitam que
misture a vida pessoal com o poder. Fui sondado por diversas vezes, e
por indivíduos cujo comportamento é bem pior do que o meu, mas eu
prefiro ser independente e, a ser possível, os ter a comer na minha
mão. MANIAS.
Já
na porta da rua não quero partir sem lhe perguntar se já decidiu
vender a propriedade e a quem. É que, cedo ou tarde, esta decisão
irá parar à minha mesa. Mas preferiria vir a saber directamente de
si, Senhor Maragato. Eu o informarei logo que decida. Fiz correr a
voz pelos meios mais reservados; nada de jornais, nem sequer do
orgulhoso conservador Expresso, e os interessados apareceram quase
que imediatamente. De algum já lhe falei, e não escondi que não me
cheirou bem. Embora saiba que nesta coisa dos negócios uma vez que a
propriedade deixe de me pertencer, não tenho nada que ver com o
futuro que lhe destinem. Mesmo assim, e por respeito à minha esposa
e aos meus sogros, todos eles já falecidos, não me satisfaz a ideia
de converter a sua mansão numa casa de jogo e prostituição.
Ainda
anteontem procurou-me um primo afastado da minha falecida esposa
dizendo que em criança tinha estado um ou dois fins-de semana nesta
casa, e que lhe ficara uma agradável memória, mesmo que vaga. Que,
conjuntamente com outros familiares, pensaram na hipótese de
adquirirem a propriedade. Assim lhes apresente um preço razoável.
Já sabe como tentam apanhar o vendedor desprevenido com argumentos
sentimentaloides. Se me pagarem o que eu quero, e apresentarei um
preço alto, incluindo o que gastarei na prevenção de incêndios,
para depois descer até onde desejar aceitarei vender ao tal,
imaginado, sindicato familiar.
Ficou
em virem em dois ou três carros, num jeito de excursão, para ver
se, de facto, se interessam. Daí que não se admirem se virem um
correpio de gente desconhecida. Aqui, entre nós que ninguém nos
ouve (mas
que depressa fará correr a novidade, quadrilheiro como é)
suspeito que, no dia da escritura, apareça o fulano do casino e
entrem, eles e ele, num acordo. Mas se assim for não terei problemas
de consciência.
Bem,
tenho que voltar para a Junta, mas antes quero deixar testemunho de
que gosto imenso de poder falar consigo. Que vou sentir a sua falta,
pois é a única pessoa com quem posso trocar impressões e pedir
opiniões sem compromisso. Uma pena só termos iniciado esta amizade
quase nas despedidas. Até a próxima, Amigo Maragato.
E
agora tenho que dar uma olhadela, como patrão, ao trabalho destes
desmatadores. Senhor Garrapato! Como está, e como vai o trabalho?
(1)
habitantes da antiga Sibar. Fig. Pessoa
dada ao luxo e aos prazeres.
Próximo
capítulo; Sobre a prevenção dos fogos.
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