quarta-feira, 5 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE cap. 8


VAI VENDER A MANSÃO?

Que me diz deste tinto? Uma excelente pomada, usando um termo do tempo do meu pai. E o presunto? A cura deste produtor, ou dos produtores espanhóis de primeira linha, é excelente. Observei como sabe fatiar em doses muito estreitas e finas, com aquela faca longa e delgada. Será que este corte ajuda quanto ao paladar? Dizem que sim, que ao ser em pequenas doses e muito finas, quase transparentes, a carne oxigena-se e liberta o seu aroma. Mas não lhe garanto que isso seja de facto assim. Só sei dizer que esta peça é muito apaladada e que com a ajuda do vinho nos tornamos sibaritas(1) sem ser conscientes de tal. De facto nem as avelãs torradas, de que sou louco apaixonado, conseguem neutralizar a qualidade tanto do vinho como do presunto.

E agora, Senhor Presidente, quer dar uma volta à casa? Hoje não posso aceitar. Tenho uma marcação com o Secretário da Câmara e não quero que fique à minha espera. Deve vir com o mandado de verificar que, nesta freguesia, se estão portando nos tais conformes, depois da barracada em que se estavam a meter. Sem que entendessem que aquilo era só fogo de aparas. Dito de outra forma. Que perderam as veleidades de infringir as regras dos bons costumes. É bem possível que venha para isso, mesmo que de entrada saque de um papel qualquer, já conhecido e sem importância, para disfarçar. Estes emproados de casaco e gravata estão, sempre, convencidos de que os das aldeias e lugares são uma espécie diferente, ao nível dos pretos das sanzalas. Uma cambada de estúpidos que não merecem ser respeitados. É como diz, tanto assim que de se mirarem ao espelho lhes acontece como ao deus grego Narciso, que olhando-se refletido na água de um lago se enamorou de si mesmo.

Não lhe gabo a sorte. Estes cargos políticos, e quanto mais dependentes de chefias pior, devem ser difíceis de aturar para quem sinta que já se devia ter terminado com hábitos do tempo do Salazar, e não digo da outra senhora porque não aceito estes eufemismos. A constituição da República diz, preto no branco, num artigo qualquer sem importância uma vez que nunca é cumprido, que é a-confessional, ou seja, que não deve dar tratamentos de favor nem aceitar imposições por nenhuma igreja. É o que se vê. Por estas e outras razões, as minhas convicções, se bem que com uma amplitude notável, não aceitam que misture a vida pessoal com o poder. Fui sondado por diversas vezes, e por indivíduos cujo comportamento é bem pior do que o meu, mas eu prefiro ser independente e, a ser possível, os ter a comer na minha mão. MANIAS.

Já na porta da rua não quero partir sem lhe perguntar se já decidiu vender a propriedade e a quem. É que, cedo ou tarde, esta decisão irá parar à minha mesa. Mas preferiria vir a saber directamente de si, Senhor Maragato. Eu o informarei logo que decida. Fiz correr a voz pelos meios mais reservados; nada de jornais, nem sequer do orgulhoso conservador Expresso, e os interessados apareceram quase que imediatamente. De algum já lhe falei, e não escondi que não me cheirou bem. Embora saiba que nesta coisa dos negócios uma vez que a propriedade deixe de me pertencer, não tenho nada que ver com o futuro que lhe destinem. Mesmo assim, e por respeito à minha esposa e aos meus sogros, todos eles já falecidos, não me satisfaz a ideia de converter a sua mansão numa casa de jogo e prostituição.

Ainda anteontem procurou-me um primo afastado da minha falecida esposa dizendo que em criança tinha estado um ou dois fins-de semana nesta casa, e que lhe ficara uma agradável memória, mesmo que vaga. Que, conjuntamente com outros familiares, pensaram na hipótese de adquirirem a propriedade. Assim lhes apresente um preço razoável. Já sabe como tentam apanhar o vendedor desprevenido com argumentos sentimentaloides. Se me pagarem o que eu quero, e apresentarei um preço alto, incluindo o que gastarei na prevenção de incêndios, para depois descer até onde desejar aceitarei vender ao tal, imaginado, sindicato familiar.

Ficou em virem em dois ou três carros, num jeito de excursão, para ver se, de facto, se interessam. Daí que não se admirem se virem um correpio de gente desconhecida. Aqui, entre nós que ninguém nos ouve (mas que depressa fará correr a novidade, quadrilheiro como é) suspeito que, no dia da escritura, apareça o fulano do casino e entrem, eles e ele, num acordo. Mas se assim for não terei problemas de consciência.

Bem, tenho que voltar para a Junta, mas antes quero deixar testemunho de que gosto imenso de poder falar consigo. Que vou sentir a sua falta, pois é a única pessoa com quem posso trocar impressões e pedir opiniões sem compromisso. Uma pena só termos iniciado esta amizade quase nas despedidas. Até a próxima, Amigo Maragato.

E agora tenho que dar uma olhadela, como patrão, ao trabalho destes desmatadores. Senhor Garrapato! Como está, e como vai o trabalho?


(1) habitantes da antiga Sibar. Fig. Pessoa dada ao luxo e aos prazeres.


Próximo capítulo; Sobre a prevenção dos fogos.

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