Quando
se gera a nossa personalidade
É indubitável que, além do que
através da placenta nos é transferido pela mãe, posto que está
verificado que os temperos que ela absorve na sua alimentação são
transferidos, nem, que seja parcialmente para o seu sangue, e daí
passem para a circulação do feto, o nasciturno adquire hábitos e
gostos com o concurso não só dos pais como também no entorno que o
vai rodeando ao longo da infância e adolescência. Até aqui tudo o
que deixei escrito é de uma obviedade cristalina e dispensável.
Todos sabemos que desde que
agarrados ao mamilo da teta materna, já o instinto nos leva a exigir
uma atenção exclusiva. Mais tarde os nossos horizontes vão-se
alargando progressivamente e podemos captar e assimilar influências
externas às do restrito círculo familiar. Daí que, depois de
citar os factos dos primeiros, senti que era, igualmente importante,
referir a influência do que mais adiante ao longo da nossa vida, nos
deparamos, nomeadamente ao nos confrontar com hábitos e costume de
pessoas com percursos diferentes dos nossos, e que, não raramente,
nos podem levar a modificar costumes e hábitos que até então os considerávamos eternos e imutáveis.
Esta introdução veio a propósito
de sentir como a nossa vida e costumes tem-se modificado, até
profundamente, ao longo das derradeiras sete-oito décadas, que posso
referir pelo facto de que as minhas memórias vividas, e observadas
do que me envolveu, diferem actualmente bastante do que estava à
nossa disposição quando entramos neste mundo.
Para já, e é um factor de peso, a literacia, mesmo que em muitas ocasiões se mantenha em níveis
“abaixo de cão”, não podemos ignorar que evoluiu positivamente.
A extensão do analfabetismo total já deixou de ser alarmante na
nossa sociedade. E mais, que apesar de reconhecer que aquilo que nos
é posto à disposição, neste campo da cultura, funciona, persiste
a famosa imagem do cobertor pequeno, que deixa os pés de fora se o
puxarmos para a cara e vice-versa. Ou seja, que nem tudo é
cumulativo, e perdem-se valências válidas.
Quando o aglomerado familiar ainda
estava na fase sedentária, em que num mesmo lar podiam conviver
várias gerações e parentes com diferentes graus de conexão, muito
do saber ancestral era transferido por via oral, normalmente pelas
mães, os pais quando tinham tempo disponível e o cansaço do
trabalho lhes permitia conviver com os descendentes, mas
principalmente pelos avós e outros idosos que eventualmente
estivessem sob o mesmo tecto.
Além das vivências pessoais que
estes adultos, educadores voluntários, transferiam aos membros das
gerações seguintes, existia um repositório bastante amplo de
contos e lendas que eram ansiosamente esperados pelos infantes, sem
que estivessem conscientes de que, na maioria dos casos, estes
contos carregavam uma mensagem, mais ou menos evidente ou oculta, que
contribuía à formação da personalidade. Daí que, especialmente
nos meios rurais, antes de que se instalasse o poder da comunicação
de massas, as famílias tinham uma importância basilar.
Primeiro foi com a imprensa, que
possibilitou o repartir de forma mais ou menos extensiva cartazes e
folhas soltas, pasquins, e jornais de distribuição limitada. Veio a
escolaridade. Inicialmente tímida na sua extensão para a população
em geral, como já sucedia nas sociedades clássicas de Grécia e
Roma, entre outras. Mas paulatinamente a mesma sociedade, na sua
evolução económica, foi tornando evidente a conveniência de
incrementar o nível de conhecimentos dos seus elementos. Até
chegarmos a definições bastante imprecisas (pelo muito que cabe
nelas) como pode ser o tão referido “recursos humanos”, que
tantas vezes é utilizado para despersonalizar o indivíduo e
transforma-lo numa “coisa”.
Retomando o fio: O desmembramento
actual do aglomerado familiar, que foi a base de apoio da humanidade,
levou a que a experiência directa, ouvida pela voz de um avó ou
equivalente, deixou de ser normal nas famílias. Com isto a formação
da personalidade dos infantes foi transferida para uns
“profissionais” que utilizam, muitos jogos, considerados
didácticos, e novas versões dos contos e fábulas antigas, muitas
vezes preparadas com o intuito de serem originais, e daí que as
mensagens imediatas que se transmitiam de gerações a gerações,
passaram a ser degradadas, pouco aptas para criar sedimentos mentais
úteis.
Inicialmente o tema de hoje estava
motivado pela necessidade que as pessoas sentem, ao longo da vida, de
modificar os hábitos (por exemplo de higiene e saúde) com que
conviveram nos seus primeiros anos. Creio que a maioria dos cidadãos
já se adaptou às novas exigências e possibilidades de usufruir de
uma higiene que não estava disponível para todas as camadas
sociais. A instalação de redes de fornecimento de água potável
com garantia de boa qualidade, e também de uma rede de esgotos
, mais a evolução das habitações, tanto em espaço disponível
como em qualidade ambiental (mesmo que ainda existam
construções, alguma novas, onde o isolamento não seja eficaz)
alteraram, em profundidade, as condições de saúde, longevidade e
conhecimento.
Mesmo assim, e sem sermos exageradamente saudosistas, não deixa de se verificar o facto de
que nem tudo é progresso garantido. Pelo caminho perdem-se valências
que foram fundamentais para chegar ao ponto em que a nossa sociedade
está. E, inevitavelmente, mais conceitos e costumes importantes se
perderão, cada vez mais rapidamente.
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