domingo, 1 de setembro de 2019

MEDITAÇÕES - Gostos e hábitos




Quando se gera a nossa personalidade

É indubitável que, além do que através da placenta nos é transferido pela mãe, posto que está verificado que os temperos que ela absorve na sua alimentação são transferidos, nem, que seja parcialmente para o seu sangue, e daí passem para a circulação do feto, o nasciturno adquire hábitos e gostos com o concurso não só dos pais como também no entorno que o vai rodeando ao longo da infância e adolescência. Até aqui tudo o que deixei escrito é de uma obviedade cristalina e dispensável.

Todos sabemos que desde que agarrados ao mamilo da teta materna, já o instinto nos leva a exigir uma atenção exclusiva. Mais tarde os nossos horizontes vão-se alargando progressivamente e podemos captar e assimilar influências externas às do restrito círculo familiar. Daí que, depois de citar os factos dos primeiros, senti que era, igualmente importante, referir a influência do que mais adiante ao longo da nossa vida, nos deparamos, nomeadamente ao nos confrontar com hábitos e costume de pessoas com percursos diferentes dos nossos, e que, não raramente, nos podem levar a modificar costumes e hábitos que até então os considerávamos eternos e imutáveis.

Esta introdução veio a propósito de sentir como a nossa vida e costumes tem-se modificado, até profundamente, ao longo das derradeiras sete-oito décadas, que posso referir pelo facto de que as minhas memórias vividas, e observadas do que me envolveu, diferem actualmente bastante do que estava à nossa disposição quando entramos neste mundo.

Para já, e é um factor de peso, a literacia, mesmo que em muitas ocasiões se mantenha em níveis “abaixo de cão”, não podemos ignorar que evoluiu positivamente. A extensão do analfabetismo total já deixou de ser alarmante na nossa sociedade. E mais, que apesar de reconhecer que aquilo que nos é posto à disposição, neste campo da cultura, funciona, persiste a famosa imagem do cobertor pequeno, que deixa os pés de fora se o puxarmos para a cara e vice-versa. Ou seja, que nem tudo é cumulativo, e perdem-se valências válidas.

Quando o aglomerado familiar ainda estava na fase sedentária, em que num mesmo lar podiam conviver várias gerações e parentes com diferentes graus de conexão, muito do saber ancestral era transferido por via oral, normalmente pelas mães, os pais quando tinham tempo disponível e o cansaço do trabalho lhes permitia conviver com os descendentes, mas principalmente pelos avós e outros idosos que eventualmente estivessem sob o mesmo tecto.

Além das vivências pessoais que estes adultos, educadores voluntários, transferiam aos membros das gerações seguintes, existia um repositório bastante amplo de contos e lendas que eram ansiosamente esperados pelos infantes, sem que estivessem conscientes de que, na maioria dos casos, estes contos carregavam uma mensagem, mais ou menos evidente ou oculta, que contribuía à formação da personalidade. Daí que, especialmente nos meios rurais, antes de que se instalasse o poder da comunicação de massas, as famílias tinham uma importância basilar.

Primeiro foi com a imprensa, que possibilitou o repartir de forma mais ou menos extensiva cartazes e folhas soltas, pasquins, e jornais de distribuição limitada. Veio a escolaridade. Inicialmente tímida na sua extensão para a população em geral, como já sucedia nas sociedades clássicas de Grécia e Roma, entre outras. Mas paulatinamente a mesma sociedade, na sua evolução económica, foi tornando evidente a conveniência de incrementar o nível de conhecimentos dos seus elementos. Até chegarmos a definições bastante imprecisas (pelo muito que cabe nelas) como pode ser o tão referido “recursos humanos”, que tantas vezes é utilizado para despersonalizar o indivíduo e transforma-lo numa “coisa”.

Retomando o fio: O desmembramento actual do aglomerado familiar, que foi a base de apoio da humanidade, levou a que a experiência directa, ouvida pela voz de um avó ou equivalente, deixou de ser normal nas famílias. Com isto a formação da personalidade dos infantes foi transferida para uns “profissionais” que utilizam, muitos jogos, considerados didácticos, e novas versões dos contos e fábulas antigas, muitas vezes preparadas com o intuito de serem originais, e daí que as mensagens imediatas que se transmitiam de gerações a gerações, passaram a ser degradadas, pouco aptas para criar sedimentos mentais úteis.

Inicialmente o tema de hoje estava motivado pela necessidade que as pessoas sentem, ao longo da vida, de modificar os hábitos (por exemplo de higiene e saúde) com que conviveram nos seus primeiros anos. Creio que a maioria dos cidadãos já se adaptou às novas exigências e possibilidades de usufruir de uma higiene que não estava disponível para todas as camadas sociais. A instalação de redes de fornecimento de água potável com garantia de boa qualidade, e também de uma rede de esgotos , mais a evolução das habitações, tanto em espaço disponível como em qualidade ambiental (mesmo que ainda existam construções, alguma novas, onde o isolamento não seja eficaz) alteraram, em profundidade, as condições de saúde, longevidade e conhecimento.

Mesmo assim, e sem sermos exageradamente saudosistas, não deixa de se verificar o facto de que nem tudo é progresso garantido. Pelo caminho perdem-se valências que foram fundamentais para chegar ao ponto em que a nossa sociedade está. E, inevitavelmente, mais conceitos e costumes importantes se perderão, cada vez mais rapidamente.


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