domingo, 22 de setembro de 2019

MEDITAÇÕES - Um escrito com mensagem



ESTIGMAS

Alguns sinónimos, mesmo que com matizes próprios: MANCHA, SINAL, FERRETE, MAZELA

Com excessiva frequência, ou quase sempre, aquela pessoa que sofre duma marcação que lhe ficou gravada desde muito cedo; por vezes já herdada de algum progenitor, consegue adaptar-se a ser conhecido, por vizinhos e conterrâneos, como se de uma inofensiva alcunha se tratasse. De facto, muitos dos cognomes ou apelidos que constam dos registos de identidade tem a sua origem numa alcunha, seja de índole pessoal, corporal ou de personalidade, mas também podem estar associados a uma origem geográfica.

Os ferretes mais penosos e indeléveis são aqueles ofensivos, que se herdaram e dos quais a pessoa “favorecida” não tem possibilidade de escapar, pelo menos facilmente. É como ter um sinal de nascença na pele. Além disso, todos aqueles que identificam a pessoa pela sua alcunha herdada, evitam e conseguem, jamais dar a saber à vítima que, por mais anos que passem e o seu comportamento não mereça aquela qualificação, é este qualificativo que, perpétuamente, lhe surge na memória.

Creio que todos nós temos, no arquivo humorístico, as vergonhas que passamos, enquanto éramos menos sabedores e imprudentes, se nos dirigíamos a alguém pela alcunha que, invariavelmente acompanhava a pessoa que nos aparecia pela frente. Nesta característica de educação transmitida, que além de errada é usada sem pensar na maldade que causa, são mesmo muitos os adultos irresponsáveis.

Um exemplo vivido. Estaríamos no início da década de '50, -na fase mais negra do após guerra consequência do golpe de estado do exército fascista espanhol- quando, sendo eu um garoto inexperto, a minha mãe me incumbiu de ir até um sapateiro de remendos (naquela época mandavam-se colocar meias solas e saltos com bastante frequência, não só pelo desgaste causado pelos infantes como também pela má qualidade dos materiais de recurso disponíveis) para ver se os meus sapatos já estavam remendados. Eu sabia onde morava e sapateiro, e ao me darem as indicações foi referido, como sempre, pelo sobrenome, não-oficial, de “sabatonas”. Fui lá ter, sem dificuldade.

O homem exercia o seu mister numa divisão que dava para a rua, com a janela quase sempre aberta. Dirigi-me a ele, e a falta da melhor, inquiri se era ali onde trabalhava o senhor “sabatonas”. Nem é necessário dizer que o homem, mais do que sabedor desta alcunha, ao ver que eu era um garoto incapaz de retorquir, deu-me o que hoje creio que devia ser uma pequena descompostura. Em concreto deve ter dito que se chamava ... (não recordo) e que era feio dar alcunhas. Mas levei os sapatos para casa.

Ao chegar, ainda com o recado fresco nos meus ouvidos, contei o sucedido. A galhofa familiar foi extensiva a todos os presentes, sem se punirem pela falta de aviso que deviam ter tido antes de eu sair.

Lamentavelmente, na Catalunha onde morava, e também na ruralidade portuguesa, era sintomático, geral e sem excepção, conhecer as pessoas pelas alcunhas e não pelos nomes. E, sem conseguir recuperar retratos correctos de outras vivências pessoais desta época, onde as alcunhas eram as personagens, e dado que sendo eu o mais velho dos filhos e não existir outra pessoa disponível para fazer recados, a situação repetiu-se em mais de uma e de duas ocasiões.

Conclusão: São hábitos populares que estão enquistados na linguagem quotidiana, e que com excessiva frequência implicam uma noção pejorativa. É factual que as alcunhas passam de geração a geração, tanto pelos utilizadores, useiros e vezeiros, como para os alvos desta forma ignóbil de ser identificados, tem uma “longa vida social” A única técnica que imagino se pode aplicar para terminar com o epíteto que mortifica, é o colocar terra de per meio. Ou dito de outra maneira, ir para longe, onde não existam pessoas que nos conheçam pelo mote de família.

Mas atenção! Podemos escapar das alcunhas anteriores, mas os já residentes, os veteranos do lugar, os que carregam as suas alcunhas “de família” não demorarão em nos atribuir uma identidade específica, que esperamos não nos cause tanto trauma como aquela da qual não se sente a mínima responsabilidade.

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