segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

MEDITAÇÕES - Preocupações



Inês de Castro voltou triste

De súbito Inês ficou calada, mesmo sorumbática, e não disse nem mais uma palavra até chegarem a Alcobaça. Quando já alcançaram a porta do mosteiro, e sem cavalgar da sua montada, Inês perguntou a Dom Pedro se não podiam prolongar a jornada, numa decisão não prevista e fora do normal, e seguir até o Real de Óbidos, que sendo já uma Vila da Rainha, ficava fora dos territórios dados, e alguns usurpados, dos frades cistercienses, donos absolutos dos Coutos de Alcobaça.

Pedro ficou assombrado, não só porque esta proposta era totalmente fora do projectado como porque, dada a hora, teriam que viajar de noite. Ele, pessoalmente, acompanhado por um par de homens de armas, não tinha problemas e a distância nem sequer era de muitas léguas, mas não estava afim de sujeitar Inês aos imprevistos que uma noite cerrada, e em terrenos pouco ou nada frequentados após o sol posto, pelo menos por pessoas de bem.

Eu, Inês, não posso exigir nem mandar nada. Neste assunto privado em que nos metemos eu só tenho más cartas na mão. Não passo de ser uma concubina, uma amante, que não respeitei a minha Dona Constança, com a qual casaste em Évora, mesmo que sem a tua presença, por procuração. Só posso perder, e tu ficas pronto para outra, pois não me parece que te queiras inscrever como monge num convento.

Aconteceu que após ouvir aquelas jovens freiras de Cós fiquei sem vontade de conviver com os frades, por muito cultos que eles sejam, e falantes em latim, português, provençal e sei lá mais que, além do francês. Quando entrarmos no Mosteiro de Santa Maria peço-te que anuncies que cheguei muito cansada e mesmo indisposta e que desejo recolher-me, de imediato, à minha estância. Agradeço que dês indicação para me enviarem uma ceia leve, um caldo e pouco mais. A minha porta estará sem trinco, como sempre, e se te apetecer podes-me visitar. Mas hoje não estou para festas. Estou mesmo aborrecida

- Assim farei. E quando todos se retirarem vou ver se esclareço o porque estás assim desgostosa.
... intervalo musical, com o som de alaúdes como música de fundo; profundo e negro de ambiente. Podem aproveitar para aliviar a bexiga.

- Truc, Truk (não é truca-truca!) Incomodo? meu amor, minha luz, minha estrela matutina e vespertina, ou seja Vénus! Das licença a este teu namorado para entrar nos teus aposentos?

Pedro. Não venhas com salamaleques. Estou aborrecida, mas não contigo, e por isso recomendo que não esgravates nos meus sentimentos nesta altura. Se ficares caladinho e sossegado vou tentar explicar as razões do desconsolo que sinto na alma.

Já sabes que estive um longo tempo em paleio com as irmãs do convento de Cós. Elas, todas sem excepção, foram muito gentis e trataram-me muito bem. Não se lamentaram de nada, pelo menos abertamente, nem se queixaram do tratamento que lhes era dado, a não ser por parte de alguns fidalgotes, que entendiam que elas eram pouco menos que prostitutas às suas ordens e caprichos. Mas, coitadas, admitiam que esta era a sua sina e por isso a aceitavam quase como um penitência de pecados que não cometeram. Pelo menos na grande maioria das vezes. Sempre ocorrem excepções...

O que me entristeceu foi confirmar o que já conhecia que acontecia nas terras de onde vim a muitas donzelas que, sem uma vocação pessoal, eram atiradas -e o termo correcto é esse mesmo- para conventos para professarem e ficarem presas de por vida sem terem culpa de serem mulheres e terem sido nascidas neste mundo cruel.

Eu sabia, sem a mais mínima dúvida, que freiras com vocação de se sacrificarem para o Divino foram sempre uma reduzida minoria. Mas o ver a alegria daqueles rostos -frescos uns e não tanto outros- por se sentiram ouvidas e atendidas sem restrições, com uma liberdade de expressão que só entre elas, e sempre com sigilo, podiam ter, foi como se, por um bocado, lhes fosse aberta a porta da gaiola.

Ou seja, que apesar de saber como funciona a nossa sociedade, o ter aquele testemunho, mesmo que cauteloso, durante quase duas horas, abriu-me uma ferida no pensar, metafóricamente claro... Não posso admitir, nem tampouco lutar contra, e logo eu..., esta decisão de enviar as filhas que não tem um “bom pretendente” por perto, a ser reclusas num prostibulo disfarçado. Eu, num caso destes, matava-me ou me matariam. A saída que a família Pires de Castro, pseudo fidalga, me deu ao me “inscrever” como Dama da Corte da Constança, pouco melhor é, sem dúvida, do que o terem-me metido num convento. Estas freiras, pelo menos, gostem ou não, tem cobertura frequente e variada.

- Não quero, nem posso, argumentar com arrazoados que contrariem as tuas sérias palavras. Só posso concordar, referindo que nestes dos países, irmãos mas desavindos por serem tão familiares e próximos, existem demasiadas famílias que se consideram donos da plebe. Ou seja, acreditam ser fidalgos de sangue, coisa a que teria muito que objectar. São gente que, para viver, sem grandes luxos, dependem do trabalho, practicamente escravo, dos seus servos, dos que, como sabes, são donos absolutos, inclusive da sua vida miserável. Tens razão, e sabes que, por enquanto sou um simples Infante, sem poder efectivo algum, e que o Senhor meu Pai, o Rei Afonso IV é que, sempre dando a mão à Santa Igreja Católica, é que manda, ou pensa que manda...

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