NÃO NOS PODEMOS FIAR DA MEMÓRIA
A nossa memória, que vai e vem, conforme lhe apetece, não é de fiar. É mais mentirosa do que a lua em quarto minguante, e traiçoeira. Pior, tem vontade própra e não aceita ser governada pelo utente. Não liga a requerimentos de pesquisa, e quando já entende que estamos totalmente perdidos, desorientados, então pode ser que decida abrir a gaveta onde guardou aquilo que queriamos recordar.
Se
não bastasse com as demostrações de egoísmo e prepotência
habituais, tem outra arma, letal, com quese deleita em nos
massacrar, ou nos agradar quando ela está de boa maré. Todos
reconhecem aquio que aqui deixarei: a
nossa memória é terrívelmente selectiva.
Ela escolhe e decide trazer para ser consultado aquilo que entende.
Em geral e para evitar que não decidirmos dar um tiro na cabeça e
terminar com estes abusos de confiança, pode colocar-se do nosso
lado, mantendo na escuridão os factos desagradáveis e oferecendo,
em bandeja de prata, só boas lembranças.
Mas
cuidado, lembrem que já nos pregou pesadas partidas, nomeadamente
quando manipulou, por conta própria, factos que não aconteceram
como nos apresenta ao tentar lembrar. Quantas vezes, depois de
afirmar com convicção que uma situação em que tivemos parte
activa aconteceu desta ou de aquela forma, em que um disse isso e
outro respondeu aquilo,somos confrontados com que nada daquilo que
relatamos correspondia à realidade dos factos.Por vontade oculta,
mas muito firme,da nossa memória, manipuladora do arquivo interno,
ficamos atados ao pelourinho por ter faltado à verdade. Sem águas
mornas: coloca o confiado relator no papel de mentiroso, sem que
tenha possibilidade, por si mesmo, de esclarecer o como,quando e
porque.
Este
comportamento abusivo do arquivista pode conduzir a que o indivíduo
responsável, ou irresponsável, dos desvios irreais venha a ser
qualificado como possuidor de umamente
excessivamente fértil,
mais rudemente até passar a ser definido como um mentiroso
compulsivo e
daí ficar socialmente desqualificado, desmerecedor de crédito,
mesmo quando não se desvia da realidade nem por um milímetro.
Conhecí, de perto, um bom profissional que tinha por hábito
melhorar os seus relatos,colocando as suas fantasias com excessiva
frequência. Era um dos tais que depois raramente convencem.O tipo
de personagem que retrata a história de Pedro
e o lobo.
Pois numa ocasião em que estava um grupo de pessoas em
descontraída cavaqueira, o tal de mente fértil, começou um
relato tão fantástico, recheado de tantos pormenores brilhantes,
que a certa altura o mais graduado do grupo lhe atirou, sem
preparação e cortando a palavra do discursante: O Senhor
desculpe, mas não acredito nesta sua história. E digo porqué: é
tão interessante, tão brilhante, que quando disse que tinha
acontecido uns anos atrás, eu deduzí que estava a sair da fornada
neste momento, que era mais um invento seu. E isso baseando-me
precisamente no facto de que sendo tão interessante não a tivesse
contado anteriormente.
Dizem
que a mentira tem pernas curtas, e por isso é apanhada
rápidamente. Eu acrescento que nem sempre se consegue descobrir o
fraude, Que há especialistas em enganar a muitos. E não digo a
todos porque não seria credível. Mas, para ser um pouco bondoso
afirmo que o mitómano nem
sempre nos pega petas propositadamente. Creio que,de facto, a sua
mente fértil o empurra a melhorar os relatos,ou mesmo a os
inventar de raíz, por mera satisfacção própria, e inclusive
para assim agradar ao ouvinte. Até o poderiamos considerar
um artista incomprendido.
A
afirmação final do parágrafo anterior não nos deveria incomodar
se avaliarmos as obras de mestres de ficção, Mesmo recohecendo
que em certas passagens ou partes das suas obras, se vislumbre que
foram ajudados pela facilidade com que conseguem utilizar factos
verídicos, fossem testemunhados por eles mesmos ou ouvidos,
consultados, de fontes credíveis. Depois tem a tarefa de
embelezar, de lhes tirar a identificação real e dar-lhe outra
imaginada. São ou não uns mentirosos? E apesar disso lemos as
suas obras, e até as compramos para as guardar na nossa estante.
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