segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

MEDITAÇÕES 51 - Não me surpreendeu


CARONTE INSCREVEU-SE NO DESEMPREGO

Era uma situação que se antevia desde meses ou anos. A evolução da sociedade não pode oferecer só alegrias e gostosuras, tal como o branco e o preto, também existem sempre os dois polos opostos. E esta dicotomia, que descuidamos como se não existisse, inclusive afecta, num retrocesso que não estava previsto, até ao nível da mitologia clássica.
Por esta razão, e por partilhar do pessimismo que tanto se teme, quando me comunicaram que viram Caronte na fila para se inscrever no fundo de desemprego, de imediato deduzi que esta personagem, mesmo que de segundo plano, estava profundamente afectado e desanimado com as mudanças e faltas de respeito dos humanos actuais.
Procurei informações directas acerca dos motivos que  empurraram Caronte á situação de sentir-se inactivo, abandonado, sem clientes com quem trabalhar na sua função de barqueiro no transporte das almas ao longo do rio Estiges e os desembarcar na praia donde lhes estava destinado ficarem a penar, com maiores ou menores castigos consoante tivesse sido o seu comportamento na vida terrena.
Caronte, enquanto esperava para ser atendido, pacientemente naquela fila, que pouco avançava, recordava a dedicação e esmero que foi seu apanágio ao longo da sua.vida, que julgava eterna, desde a mais escura antiguidade. Obviamente sentia-se humilhado e desprezado, sem que conseguisse encontrar justificações para o que lhe estava acontecendo.
Fomos pedir que nos concedesse uma entrevista, pois o respeito que, pessoalmente, ainda sentimos pela personagem que, de certo modo, encarnou. mesmo que simbolicamente, nos obrigava a tentar entender as suas razões. E Caronte nos concedeu um tempo de antena, dando a entender que com isto poderia ultrapassar aquela tediosa fase de espera na estática fila.
Quis que recordássemos que ele era o barqueiro, em princípio voluntário e gratuito, mas que desde os tempos mais remotos os parentes dos defuntos, quando os depositavam no túmulo, e assim a sua alma poderia libertar-se para poder partir para o futuro interminável,  colocavam uma moeda debaixo da língua do morto, e amarravam o queixo à testa para evitar que a moeda caísse, caso acidentalmente o cadáver decidisse abrir a boca. Quando a alma chegava à praia de embarque na barca de Caronte, entregava ao barqueiro o óbolo que servia para "gratificar" Caronte -ou seja, mais concretamente pagar- sabendo, pélas informações colhidas através das pitonisas, que o barqueiro era ganancioso e que uma valiosa moeda garantia o desembarque num ponto menos mau.
Caronte lamentou-se de que, com a evolução dos costumes sociais, as moedas passaram a ser cada vez de menor valor, e até houve almas que vinham à praia mais pobres que Job. Ele, Caronte, tinha pena deles e  os transportava até um local de terceira ou quarta classe, desculpando-se péla desfeita que os familiares do defunto lhe tinham infligido.
Mas as coisas foram piorando. Recentemente, os familiares,  numa demostração de falta de respeito e até de vontade de insultar o barqueiro, começaram a colocar sob a língua do defunto, uma daquelas chapas de vil plástico que servem para conseguir usar um carrinho onde colocar as mercas no super. Ora, eu -dizia Caronte- fui desde início uma personagem respeitada no universo da mitologia, e não posso permitir que uns badamecos da actualidade, não tão só se furtem ao pagamento como até se permitam insultar.
Tenho ou não tenho motivos de queixa e de pedir um subsídio de desemprego?

Quem somos nós para contrariar tão sensatas e coerentes palavras. Não nos atrevemos a responder a Caronte que como o podem respeitar se eles nem respeitam os seus pais, professores e mestres?



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