CARONTE INSCREVEU-SE NO DESEMPREGO
Era
uma situação que se antevia desde meses ou anos. A evolução da
sociedade não pode oferecer só alegrias e gostosuras, tal como o
branco e o preto, também existem sempre os dois polos opostos. E
esta dicotomia, que descuidamos como se não existisse, inclusive
afecta, num retrocesso que não estava previsto, até ao
nível da mitologia clássica.
Por
esta razão, e por partilhar do pessimismo que tanto se teme,
quando me comunicaram que viram Caronte na fila para se inscrever
no fundo de desemprego, de imediato deduzi que esta personagem,
mesmo que de segundo plano, estava profundamente afectado e
desanimado com as mudanças e faltas de respeito dos humanos
actuais.
Procurei
informações directas acerca dos motivos que empurraram
Caronte á situação de sentir-se inactivo, abandonado,
sem clientes com quem trabalhar na sua função de barqueiro no
transporte das almas ao longo do rio Estiges e os desembarcar
na praia donde lhes estava destinado ficarem a penar, com
maiores ou menores castigos consoante tivesse sido o seu
comportamento na vida terrena.
Caronte,
enquanto esperava para ser atendido, pacientemente naquela fila,
que pouco avançava, recordava a dedicação e esmero que foi seu
apanágio ao longo da sua.vida, que julgava eterna, desde a mais
escura antiguidade. Obviamente sentia-se humilhado e
desprezado, sem que conseguisse encontrar justificações para o
que lhe estava acontecendo.
Fomos
pedir que nos concedesse uma entrevista, pois o respeito que,
pessoalmente, ainda sentimos pela personagem que, de certo modo,
encarnou. mesmo que simbolicamente, nos obrigava a tentar
entender as suas razões. E Caronte nos concedeu um tempo de
antena, dando a entender que com isto poderia ultrapassar aquela
tediosa fase de espera na estática fila.
Quis
que recordássemos que ele era o barqueiro, em princípio
voluntário e gratuito, mas que desde os tempos mais remotos os
parentes dos defuntos, quando os depositavam no túmulo, e assim a
sua alma poderia libertar-se para poder partir para o futuro
interminável, colocavam uma moeda debaixo da língua
do morto, e amarravam o queixo à testa para evitar que a moeda
caísse, caso acidentalmente o cadáver decidisse abrir a boca.
Quando a alma chegava à praia de embarque na barca de Caronte,
entregava ao barqueiro o óbolo que servia para "gratificar"
Caronte -ou seja, mais concretamente pagar- sabendo, pélas
informações colhidas através das pitonisas, que o barqueiro era
ganancioso e que uma valiosa moeda garantia o desembarque num
ponto menos mau.
Caronte
lamentou-se de que, com a evolução dos costumes sociais, as
moedas passaram a ser cada vez de menor valor, e até houve almas
que vinham à praia mais pobres que Job. Ele, Caronte, tinha pena
deles e os transportava até um local de terceira ou quarta
classe, desculpando-se péla desfeita que os familiares do defunto
lhe tinham infligido.
Mas
as coisas foram piorando. Recentemente, os familiares, numa
demostração de falta de respeito e até de vontade de insultar o
barqueiro, começaram a colocar sob a língua do defunto, uma
daquelas chapas de vil plástico que servem para conseguir usar um
carrinho onde colocar as mercas no super. Ora, eu -dizia Caronte- fui desde início uma personagem respeitada no universo da
mitologia, e não posso permitir que uns badamecos da actualidade,
não tão só se furtem ao pagamento como até se permitam
insultar.
Tenho
ou não tenho motivos de queixa e de pedir um subsídio de
desemprego?
Quem
somos nós para contrariar tão sensatas e coerentes palavras. Não
nos atrevemos a responder a Caronte que como o podem respeitar se
eles nem respeitam os seus pais, professores e mestres?
Sem comentários:
Enviar um comentário