terça-feira, 4 de dezembro de 2018

MEDITAÇÕES 52 . Batem à porta


CARONTE PEDE A PALAVRA

Bom dia Senhor Virella, desde ontem Amigo.

Li, e reli por duas vezes, sempre com muito agrado o relato que editou neste seu espaço, centrado na troca de impressões que tivemos ontem enquanto eu estava, meditando e isolado no meio de, uma longa e estática fila de desempregados para tentar conseguir uma ajuda profissional de sobrevivência sobrevivência. E agora venho tentar que me ceda um pouco de tempo de antena para poder referir uma recente mas pujante situação que fez entornar o copo das minhas desgraças.

Se o tema de hoje não ficou devidamente descrito, ontem, deve ter sido por causa de quando aquele maralhal o viu chegar com um microfone na mão, logo, como moscas, nos rodearam compactamente. E eu não estou habituado a apertos. Mesmo quando há chacinas, seja em guerras ou acidentes, como a barca é pequena, só posso levar um máximo de meia dúzia de clientes de cada vez. Os outros tem que esperar na praia. Fiquei nervoso e esqueci metade do que teria desejado contar.

Vou entrar no assunto de hoje. Deve saber, Senhor Virella, que a decisão de optar para uma cremação em vez do enterro tradicional tem tido uma procura espantosa, tornou-se uma moda. Eu, conhecedor do problema da  consumição dos corpos centrado na troca de impressãoes que tivemos ontem enquanto eu estava, meditabundo e isolado no meio de, uma longa e estática fila de desempregados para tentar conseguir uma  ajuda profissional de sobrevivência sobrevivência. E agora venho tentar que me ceda um pouco de tempo de antena para poder referir uma recente mas pujante situação que fez entornar o copo das minhas desgraças.


Se o tema de hoje não ficou devidamente descrito, ontem, deve ter sido por causa de quando aquele maralhal o viu chegar com um microfone na mão, logo, como moscas, nos rodearam compactamente. E eu não estou habituado a apertos. Mesmo quando há chacinas, seja em guerras ou acidentes, como a barca é pequena, só posso levar um máximo de meia dúzia de clientes de cada vez. Os outros tem que esperar na praia. Fiquei nervoso e esqueci metade do que teria desejado contar.

Vou entrar no assunto de hoje. Deve saber, Senhor Virella, que a decisão de optar para uma cremação em vez do enterro tradicional tem tido uma procura espantosa, tornou-se uma moda. Eu, conhecedor do problema da consumição dos corpos, entendo que é uma opção pertinente e ecológica, pois que os cemitérios tem a terra saturada e os corpos levam muito mais tempo a se desfazer, tudo por causa dos medicamentos acumulados nos corpos, especialmente de antibióticos.

Tudo bem, mas o que sei é que na minha barca. Descontando os  caloteiros que não querem pagar o serviço e os trafulhas que trazem uma rodela de plástico onde se pode ler que “vale 50 cêntimos” a realidade é que ninguém as aceita para trocar por moeda a sério. O que posso afirmar é que o rendimento do meu trabalho cada vez é mais fraco, e os meus braços de remador já se cansam como jamais tinha acontecido.

O Amigo Virella, se pudesse estar um par de dias acompanhando-me na barca veria como está a crise para este humilde servidor social. Sim, porque levar as almas até o seu destino final implica conhecer bem a  costa e as características de cada um dos portos onde largar as almas. Lá verificaria que não aparecem almas queimadas ou enfarruscadas, só algumas com as vestes com alguma terra da cova, mas que sacudidas ficam aceitáveis. 

E sabe parqué? Eu sei! Tive que ir espreitar no crematório para ver, embora os meus conhecimentos históricos já me tinham explicado o que acontecia. Ao queimar o corpo, num caixão de aparite ou cartão, muito se transforma em fumo e daí que sai pela chaminé rumo aos céus, quando o estatuto determinado para cada defunto lhe destinava um lugar possivelmente bem diferente. Com os ossos grandes é diferente, pois que não se desfazem. Mas não vamos falar de coisas desagradáveis.

Memorizando recordo que dos que foram queimados em autos de fé pela Sagrada Inquisição, cujas decisões tinham força de lei, nenhum embarcou na minha barca, fossem ou não culpados. Todos rumaram para cima,misturados no fumo da lenha, verde para que durasse mais tempo. Outro tanto aconteceu com os que foram gaseados e queimados nos campos de extermínio nazis. Se o Sr. Virella pensar nisso que lhe digo entenderá o quanto eu tenho sofrido com a crise de trabalho.

Como pode imaginar eu pertenço a uma confraria de barqueiros, que tem confrades pelo globo todo, e com tarefas muito semelhantes. Por isso e pela idade que tenho, que não se pode contabilizar por anos, nem séculos, mas por milénios, não se admirará se lhe digo que falo, leio e escrevo numa imensidade de línguas, antigas, algumas mesmo já mortas, como o sânscrito. E outras em actividade, mas delas as há em declínio, como eu no meu trabalho.

E não maço mais. A conversa foi demasiado longa, e sou falador por natureza, se bem que raramente tenho com quem dialogar dado o facto de que os meus clientes nunca podem falar e de vivos era muito raro aparecer um. Se conseguir ter uma tarde livre gostaria de o ter como companheiro de remadas. Veria quantos lugares ficam vazios nas viagens de agora. E, já agora, lembrei-me de que no dia em que carecer do meu trabalho (que seja dentro de bastantes anos) o levarei a um porto de confiança. Não diga nada a ninguém, mas tenho boas relações com os porteiros da Glória, e sei que tenha muito ou pouco na sua ficha, lhe darão entrada, nem que seja pela porta do cavalo.

Os meus respeitosos cumprimentos e votos de muita saúde. 

O Amigo CARONTE


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