Ou
“Alembraduras”
Nas
mais recentes passagens por salas de cinema, verificamos que, a
classificação etária dos filmes, não é taxativa. Principalmente
pelos pais ou acompanhantes de crianças, que são levadas a assistir
a projecção de filmes sob a observação criteriosa de adultos que
os acompanham. Nós já no patamar de avós, discordamos mas calamos.
Ficamos com a noção de que, sob disfarce de serem contos
fantásticos, podem não digo a induzir para a violência, pois que
mesmo no berço as nossas indefesas criaturas já mostram ter pouco
respeito pela dor que podem infligir a outrem, mas, pelo menos, a
considerar acções que normalmente reprovamos como sendo aceitáveis,
banais.
Claro
que não se restila criar os nossos descendentes numa redoma de
ignorância e que é preferível que os ajudemos a saber como se
devem defender e evitar situações potencialmente desagradáveis.
Aceitamos, sem a menor dúvida, que o mundo sempre foi perigoso, ou
como se diz em italiano mondo cane. Mas
desligar da nossa função educativa entregando esta responsabilidade
a uma produtora de filmes, cujo propósito fundamental é conseguir
um bom resultado económico do seu investimento, não me parece minimamente aceitável.
Esta
dissertação, pretensamente moralista, recordou-me o que aconteceu
com o meu irmão mais novo (15 anos de diferença) quando o levamos
ao seu baptismo no cinema. Numa época em que as autoridades ou os
funcionários da sala em sua representação, exigiam o mostrar a
cédula ou o B.I., para garantir que o espectador que tinham pela
frente, podia entrar sem infringir a lei. Neste caso a sala era
particular, sem policiamento, e por isso a porta era bastante, ou
totalmente, livre de controle.
Naquele
então o programa normal compunha-se de uns “aperitivos”, filmes
curtos, noticiários (da RKO, Pathé, Artur Rank ou do SNI, entre
outros), desenhos animados ou documentários sérios. Naquele dia na
fase inicial projectaram um filme cómico da série OS TRÊS
ESTAROLAS. Proliferavam os gags à americana, com alguma violência
mascarada de brincadeira. Numa das cenas apareceu a habitual batalha
de tartes de creme, atiradas à cara de uns e outros. Era quase que
indispensável numa fita cómica de Hollywood. O meu irmão, miúdo
com uns três anos mal medidos, desatou a chorar e agitado negou-se a
continuar na sala, dizendo, entre choros, baba e ranho: não
gosto de ver homens dentro de bolos!
A
mesma personagem, o irmão, e creio que numa idade mais recuada, mas
em que já comia sozinho, sentado na mesa de família, estava
pasmado, parado, em frente do prato de sopa, com a colher na mão
direita, mas sem iniciar a sua ingestão. A mãe perguntou-lhe se não
gostava da sopa, ou então porque não comia, se estava quente ou
fria? Respondeu Não como
esta sopa porque tem um bocadinho de mócala! Foi-se
ver o que motivava esta nega e, de facto, nadava no prato uma mosca,
minúscula, do género que acompanhava os cachos de uvas. Ele, como se
entende, não discernia as moscas pelo tamanho e tipo. Aquele insecto
só era, sob o seu critério, um bocadinho de mosca.
Todos
temos uma quantidade de recordações das saídas de crianças, que
surgem sem as procurar, em geral como reflexo de outra memória
totalmente díspar. Para as outras pessoas são simples patetices que
não vale a pena difundir, mas que para aqueles que as viveram
continuam a estar carregadas de ternura.
Outra
vivência curiosa, e da mesma época, ocorreu com uma senhora que
morava a uns cem metros da nossa casa. Pessoa bastante robusta, que
pesaria umas boas dezenas de quilos. Vimos que vinha andando, muito
devagar, em nossa direcção. Avançava tão devagar, quase arrastando
os pés, que julgamos que podia estar doente. Fomos ao seu encalço e
verificamos que trazia, “para os meninos” um cágado, de tamanho
razoável, atado pelo pescoço com um cordel, e andando pelos seus
pés, dado que têm quatro patas, como qualquer quelónio que se
preze.
Foi
um esforço “sobre-o-mano” não nos rirmos à gargalhada, ficar
só com uns sorrisos educados para agradecer a sua lembrança à Dona
Margarida. Recolher o bicho encascado e tirar-lhe a rédea. Não
recordo o tempo que durou a estadia do cágado no quintal, ou no
tanque de rega. Mas suponho que desapareceu em poucas semanas. E dois
cágados passamos às tartarugas.
Muitos
anos mais tarde, quando o nosso filho mais velho já estava na
Embaixada em Rabat, fomos até Marrocos para o visitar. Num passeio
pelo interior paramos num mercado a céu aberto, popular, indígena.
Ficamos, os que não conhecíamos os costumes locais, admirados em
primeiro lugar por terem à venda verduras que aqui ainda não tinham chegado a ser vulgares: aipo, pimentos de diferentes formas e cores,
beringela, alcachofras e legumes que em Portugal já não se
encontravam à venda, entre eles os chicharos e variedades de feijão
e feijoca muito diversas. Muitas bancas de comida pronta, tanto de
grelhados como de guisado de carneiro, ou tagide, no seu tacho de
barro e a tampa cónica.
Mas
o que me acendeu o interesse foi um rapaz que tinha uma caixa cheia
de tartarugas de terra, as de casca alta. O moço vendo a
possibilidade de vender perguntou, em francês, se estava
interessado. Depende do preço... Um preço ridículo para mim. E qual
escolhe, perguntou? Eu quero uma casal, macho e fêmea. Sorridente e
com malandrice, ele apontou para a caixa dizendo que podia escolher.
Depois de manusear os animais que me agradavam, dei-lhe as duas
tartarugas que escolhera. Muito bem, são tantos dirhams,
mas como sabia quais escolher? Pois da mesma maneira como você as
conhece ! E como? Dando-lhes a volta: os machos tem a barriga lisa ou
um pouco convexa, enquanto as fêmeas tem uma cova perto da cauda,
para possibilitar a tarefa do macho para a fecundação. UM GRANDE
SORRISO e um duplo aperto de mão, pois o rapaz não dava como certo
que eu, como turista, conhecesse este importante pormenor.
Pouco
tempo depois de estarem à solta pelo jardim de casa, um dia ouvimos
um matraquear estranho, insólito, que não correspondia a nenhum
ruído conhecido. São as tartarugas na sua brincadeira amorosa,
esclareci sabichão. Uns dias depois encontrei dois ovos de forma
alongada mas de volume semelhante ao dos pombos. Como já estávamos
no fim de Setembro, e o tempo não era o de Marrocos, decidi colocar
os dois ovos numa caixinha com areia seca e a deixar perto do forno
de cerâmica, a fim de lhes garantir uma temperatura mais apropriada.
Nunca apareceram as desejadas tartarugas ninja. Entretanto as
duas adultas, cheias de saudade, iam com muita frequência até o
portão, batiam com a cabeça para o abrir, e devem ter encontrado o
portão aberto e partiram rumo ao Atlas. O jardineiro que cá fazia
serviço era useiro em deixar o portão aberto, por mais que eu lhe
recomendasse que devia estar sempre fechado, prevendo que as
tartarugas queriam fugir. E, em dias diferentes, ambas se escaparam. Alguém que não a Dona Margarida as encontrou e as levou, uma de
cada vez, possivelmente.
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