terça-feira, 9 de julho de 2019

VIVÊNCIAS - Coisas velhas



Ou “Alembraduras”

Nas mais recentes passagens por salas de cinema, verificamos que, a classificação etária dos filmes, não é taxativa. Principalmente pelos pais ou acompanhantes de crianças, que são levadas a assistir a projecção de filmes sob a observação criteriosa de adultos que os acompanham. Nós já no patamar de avós, discordamos mas calamos. Ficamos com a noção de que, sob disfarce de serem contos fantásticos, podem não digo a induzir para a violência, pois que mesmo no berço as nossas indefesas criaturas já mostram ter pouco respeito pela dor que podem infligir a outrem, mas, pelo menos, a considerar acções que normalmente reprovamos como sendo aceitáveis, banais.

Claro que não se restila criar os nossos descendentes numa redoma de ignorância e que é preferível que os ajudemos a saber como se devem defender e evitar situações potencialmente desagradáveis. Aceitamos, sem a menor dúvida, que o mundo sempre foi perigoso, ou como se diz em italiano mondo cane. Mas desligar da nossa função educativa entregando esta responsabilidade a uma produtora de filmes, cujo propósito fundamental é conseguir um bom resultado económico do seu investimento, não me parece minimamente aceitável.

Esta dissertação, pretensamente moralista, recordou-me o que aconteceu com o meu irmão mais novo (15 anos de diferença) quando o levamos ao seu baptismo no cinema. Numa época em que as autoridades ou os funcionários da sala em sua representação, exigiam o mostrar a cédula ou o B.I., para garantir que o espectador que tinham pela frente, podia entrar sem infringir a lei. Neste caso a sala era particular, sem policiamento, e por isso a porta era bastante, ou totalmente, livre de controle.

Naquele então o programa normal compunha-se de uns “aperitivos”, filmes curtos, noticiários (da RKO, Pathé, Artur Rank ou do SNI, entre outros), desenhos animados ou documentários sérios. Naquele dia na fase inicial projectaram um filme cómico da série OS TRÊS ESTAROLAS. Proliferavam os gags à americana, com alguma violência mascarada de brincadeira. Numa das cenas apareceu a habitual batalha de tartes de creme, atiradas à cara de uns e outros. Era quase que indispensável numa fita cómica de Hollywood. O meu irmão, miúdo com uns três anos mal medidos, desatou a chorar e agitado negou-se a continuar na sala, dizendo, entre choros, baba e ranho: não gosto de ver homens dentro de bolos!

A mesma personagem, o irmão, e creio que numa idade mais recuada, mas em que já comia sozinho, sentado na mesa de família, estava pasmado, parado, em frente do prato de sopa, com a colher na mão direita, mas sem iniciar a sua ingestão. A mãe perguntou-lhe se não gostava da sopa, ou então porque não comia, se estava quente ou fria? Respondeu Não como esta sopa porque tem um bocadinho de mócala! Foi-se ver o que motivava esta nega e, de facto, nadava no prato uma mosca, minúscula, do género que acompanhava os cachos de uvas. Ele, como se entende, não discernia as moscas pelo tamanho e tipo. Aquele insecto só era, sob o seu critério, um bocadinho de mosca.

Todos temos uma quantidade de recordações das saídas de crianças, que surgem sem as procurar, em geral como reflexo de outra memória totalmente díspar. Para as outras pessoas são simples patetices que não vale a pena difundir, mas que para aqueles que as viveram continuam a estar carregadas de ternura.

Outra vivência curiosa, e da mesma época, ocorreu com uma senhora que morava a uns cem metros da nossa casa. Pessoa bastante robusta, que pesaria umas boas dezenas de quilos. Vimos que vinha andando, muito devagar, em nossa direcção. Avançava tão devagar, quase arrastando os pés, que julgamos que podia estar doente. Fomos ao seu encalço e verificamos que trazia, “para os meninos” um cágado, de tamanho razoável, atado pelo pescoço com um cordel, e andando pelos seus pés, dado que têm quatro patas, como qualquer quelónio que se preze.

Foi um esforço “sobre-o-mano” não nos rirmos à gargalhada, ficar só com uns sorrisos educados para agradecer a sua lembrança à Dona Margarida. Recolher o bicho encascado e tirar-lhe a rédea. Não recordo o tempo que durou a estadia do cágado no quintal, ou no tanque de rega. Mas suponho que desapareceu em poucas semanas. E dois cágados passamos às tartarugas.

Muitos anos mais tarde, quando o nosso filho mais velho já estava na Embaixada em Rabat, fomos até Marrocos para o visitar. Num passeio pelo interior paramos num mercado a céu aberto, popular, indígena. Ficamos, os que não conhecíamos os costumes locais, admirados em primeiro lugar por terem à venda verduras que aqui ainda não tinham chegado a ser vulgares: aipo, pimentos de diferentes formas e cores, beringela, alcachofras e legumes que em Portugal já não se encontravam à venda, entre eles os chicharos e variedades de feijão e feijoca muito diversas. Muitas bancas de comida pronta, tanto de grelhados como de guisado de carneiro, ou tagide, no seu tacho de barro e a tampa cónica.

Mas o que me acendeu o interesse foi um rapaz que tinha uma caixa cheia de tartarugas de terra, as de casca alta. O moço vendo a possibilidade de vender perguntou, em francês, se estava interessado. Depende do preço... Um preço ridículo para mim. E qual escolhe, perguntou? Eu quero uma casal, macho e fêmea. Sorridente e com malandrice, ele apontou para a caixa dizendo que podia escolher. Depois de manusear os animais que me agradavam, dei-lhe as duas tartarugas que escolhera. Muito bem, são tantos dirhams, mas como sabia quais escolher? Pois da mesma maneira como você as conhece ! E como? Dando-lhes a volta: os machos tem a barriga lisa ou um pouco convexa, enquanto as fêmeas tem uma cova perto da cauda, para possibilitar a tarefa do macho para a fecundação. UM GRANDE SORRISO e um duplo aperto de mão, pois o rapaz não dava como certo que eu, como turista, conhecesse este importante pormenor.

Pouco tempo depois de estarem à solta pelo jardim de casa, um dia ouvimos um matraquear estranho, insólito, que não correspondia a nenhum ruído conhecido. São as tartarugas na sua brincadeira amorosa, esclareci sabichão. Uns dias depois encontrei dois ovos de forma alongada mas de volume semelhante ao dos pombos. Como já estávamos no fim de Setembro, e o tempo não era o de Marrocos, decidi colocar os dois ovos numa caixinha com areia seca e a deixar perto do forno de cerâmica, a fim de lhes garantir uma temperatura mais apropriada. Nunca apareceram as desejadas tartarugas ninja. Entretanto as duas adultas, cheias de saudade, iam com muita frequência até o portão, batiam com a cabeça para o abrir, e devem ter encontrado o portão aberto e partiram rumo ao Atlas. O jardineiro que cá fazia serviço era useiro em deixar o portão aberto, por mais que eu lhe recomendasse que devia estar sempre fechado, prevendo que as tartarugas queriam fugir. E, em dias diferentes, ambas se escaparam. Alguém que não a Dona Margarida as encontrou e as levou, uma de cada vez, possivelmente.



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