Cordas
e suicidas
Uma
má experiência me elucidou, ou confirmou aquilo que implicitamente já sabia, de que é pertinente ter muito cuidado com aquilo que se
diz e escreve, nomeadamente quando, apesar de estar convicto de que
não ultrapassamos os limites do aceitável. E eu sou pecador
penitente desta falta de travão no verbo.
Quando
esquecemos que ninguém gosta que lhe apontem ter um chicalho no
olho, já devemos recordar que está na mira de lhe ser apontada a
trave que traz na sua vista. Dito de outro modo. É muito imprudente,
inadequado, ofensivo e imperdoável por quem se sinta visado, o lhe
referir qualquer defeito, mesmo que leve e considerado sem
importância. Mesmo que se faça com boas intenções. Esquecer a
prudência, especialmente com pessoa que temos como amigo “do
peito”. Arrisca-se a perder o amigo, e com muitas probabilidades de
ser um desencontro eterno.
Este preâmbulo pretende preparar o desconhecido leitor para um assunto que
não me atrevo a apresentar a ninguém, especialmente a pessoas que
penso podiam ser conhecedores de um facto consumado, verificável historicamente, ou que, pelo contrário, é uma memória de uma
mentira espalhada com o propósito de denegrir. Coisa que não
podemos considerar como impossível.
O
assunto vem a propósito de um toponímico local. Num município com
que estou ligado por matrimónio, existe um cemitério bastante
antigo, que por carência de espaço disponível, foi decidido anexar
uma área, situada a umas centenas de metros, onde se consagrou um
novo campo-santo.
O
antigo cemitério, ainda funcional para os recém falecidos cujas
famílias sejam possuidoras de campas privadas, tem uma igreja,
consagrada creio que a Santo António, mas que não trem paróquia, e
que durante décadas, ou centenas de anos, serviu de Câmara Mortuária onde velar os mortos antes de serem entregues para o
repouso “eterno”. Mais propriamente durante um período de tempo,
anos, estipulado por leis e costumes. Com a introdução do espírito
de promoção turística, sempre disposto a tudo sacrificar para
atrair visitantes de poucas horas, esta igreja foi desactivada das
suas funções tradicionais e dedicada a ser mais um espaço
museológico, pouco visitado. Tudo bem. Aceite sem problemas pela
população ainda existente.
Já
dentro do recinto murado que constitui o campo santo, e situado ao
lado direito da referida Igreja, existe um pequeno espaço, recatado, que é conhecido, pela população autóctone, como ser reservado ao
enterramento dos leprosos, e também dos ajustiçados ou suicidas.
E
aqui tropeço com a inibição de me atrever a perguntar: Havia
leprosos nesta área?, fosse o concelho actual ou bastante maior,
abrangendo mais população? E existia um “hospital” para acolher
estes doentes, ou seja, utilizando a nomenclatura clássica , uma
gafaria? E donde estava situada?
Já
tive uma muito má experiência com este tema, embora noutra terra.
Referir este facto, e outros semelhantes, hoje, pode ser visto como uma ofensa pessoal,
imperdoável. Tentar esclarecer que as condições de salubridade
existentes cem anos atrás, e até mais recentes, eram muito diferentes das
de hoje é insistir nas ofensas. Que os campos alagados, fossem
arrozais ou pantanosos, eram focos de febres palúdicas, de sezões,
e que a inexistência de redes de esgotos, mais o aproveitamento das
águas fecais para regar e adubar terrenos onde se cultivavam
vegetais de consumo humano era uma fonte de transmissão e
perpetuação doenças, hoje custa a admitir, mas não se pode
negar, por ser conhecido e óbvio.
Referir
que, se conheceu, indirectamente, mas por via confiável, que, além
da tuberculose, endémica, a sarna e outras doenças de pele, ainda
existiam núcleos de lepra nas primeiras décadas do século XX é
visto como uma ofensa de primeiro grau.
Daí
que não me atrevo a consultar nenhum cidadão, natural do concelho
em questão, sobre o “talhão dos leprosos”. Existe um anexim,
bem antigo, que alerta para : nunca falar em cordas em casa dum
enforcado.
E
anexins que nos afastam da verdade os há às dúzias:
- Mal me querem as comadres, porque lhes digo as verdades.
- Quem não me crê, verdade me não diz.
- A verdade não quer enfeites.
- Vai-se a língua à verdade.
- Amigo que fala verdade, e espelho são, diz o que é.
- A verdade é amarga, a mentira é doce.
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