sábado, 31 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Capítulo 23


Já dispostos a comer e pouco falar.

Continuo envergonhada pela atitude que tomei enquanto o caminho entre a estação e o restaurante. Fui estúpida, atrevida e fora do senso, sumamente atrevida e fora de senso. Um verdadeiro e indesculpável desastre. Dos três que me calharam neste sorteio, nem um, nem sequer o Zé, mordeu o anzol. E ao longo do almoço os únicos comentários ficaram restritos à qualidade da comida, a oferecer uma partilha e, sensatamente confesso, naquele nível de falsa confiança que colocamos nas conversas entre estranhos. Pode-se afirmar, sem contraditório, que nesta mesa só tem coisas em comum o pai e os filhos. Eu sou, de facto, uma penetra, que entrei por via uterina. A cara não me caiu de vergonha porque está bem agarrada ao corpo. Se fosse uma caraça já estaria pisada e repisada debaixo da mesa.- 

- Meninos, e Isabel, tenho que comunicar que não consigo meter mais nada -por enquanto- pela goela abaixo. O arroz com bife estava tão bom que não recordo jamais ter sido servido com a mesma qualidade. A vossa escolha de local, quanto a mim, não podia ser melhor.

- Em meu nome e da Luísa sentimos sumamente agradados por saber que vos, orientamos satisfatoriamente. Não é, mana? E a Isabel, que só petiscou uns retalhos das nossas travessas, qual é a sua sentença.

Comecei ajudando a Luísa na sua guerra contra aquela enorme cabeça de garoupa. Em verdade, a cabeça trazia agarrada uma boa posta do cachaço. E vi que as duas gostamos daquele petisco que fica nas bochechas do peixe. Isto não obstou a que, mais os acompanhamentos, em especial referir uns grelos que devem ter vindo de bem longe, pelo tenros e saborosos, e umas batatas certamente nacionais, ficamos ambas demasiado recheadas. E digo isso por mim, sem antes ter pedido opinião à Luísa. Tenho que apresentar um pedido de desculpa ao Bruno por não ter partilhado devidamente da sua travessa. Mas não me cabia mais nada.

Já que falam de mim, além de confirmar da frescura, cozedura e acompanhamentos da cabeça de peixe, sinto-me na obrigação de referir a qualidade do azeite. São poucos os locais onde este condimento, tão importante e que tão de boa qualidade se produz neste país, igualem a selecção que hoje nos colocaram na mesa. É um daqueles azeites que, pingado sobre uma tosta, fazem um bom aperitivo antes da refeição.

Parece que nem sequer estive na mesa. Deixam-me para o fim, e não consegui arranjar quem me ajudasse a consumir o que vinha na travessa. Paciência. Estive quase disposto a pedir que me preparassem uma lancheira para levar para casa. Mas tive vergonha e também pensei, como apareço agarrando um saco no bufete?

- Então,o capitão do batalhão, comprovando que a tropa está satisfeita e sem baixas, decide que devemos pensar na sobremesa e no café. Eu abro as hostilidades pedindo uma mousse de manga, que vi no balcão quando fui lavar as mãos. Prefiro o sabor desta fruta tropical ao do chocolate, sem desmerecer desta, que antevejo também ser de produção própria, e esmerada. E fecho com uma bica cheia e quentinha.

- Sou da geração do capitão. mas um pouco mais nova, como pertence nos casais. A minha contribuição é, com boa vontade de acompanhar, e com esforço, uma salada de frutas frescas, sem aditivos nem açúcar. E, claro, também alinho numa bica cheia, que no Porto seria um cimbalino.

Acompanho, em tudo à Isabel, nova integrante oficial do pelotão -e já era tempo disso, pois o pai não devia passar as noites de inverno sem uma companhia em condições- Ou seja, salada de frutas e café, bem cheio.

E eu fecho a encomenda, com uma dose de torta de laranja e café. Sem charuto nem sequer um triste cigarro de pacote, sem referir a cigarrilha que sabe tão bem. A lei manda e o cidadão, respeitoso à força, obedece.

- Já chegou o café e também o saco com a metade do que vinha na travessa do Bruno. Foi uma gentileza do dono, ou da casa se preferirem. Não podes desprezar este cuidado. E agora, atendendo que tivemos o desplante de vir incomodar num dia de trabalho dou autorização aos dois elementos com vida profissional activa que, depois de beber o seu cafezito, partam para os respectivos compromissos. A contabilidade, como habitualmente, fica ao encargo do velho. É uma prerrogativa que a idade nos oferece.

Não ponham cara de que desejam continuar com estas duas jarras. Luísa deves ter tarefas importantes na tua mesa. O ser assistente da cadeira não é coisa só honorífica, tens responsabilidades, e os pais não podemos impedir o trabalho dos filhos. Tu, Bruno, tens que comparecer no bufete onde te aceitaram devido ao teu currículo académico. Mesmo que não exista um horário rígido não te podes baldar sem mais nem menos.

Ficaram muitos assuntos por falar entre nós. E nem todos se devem comentar ao longo de uma refeição. Temos que coordenar as nossas disponibilidades, de preferência num fim-de-semana ou num destes feriados com ponte que são de tanto agrado da população em geral. Combinem entre os dois e digam-nos do que decidiram. Nós somos donos de nós mesmos, e todos os dias são bons.
E agora, beijinhos e abraços. Creio que estamos todos satisfeitos deste encontro. Sigam. A nossa bagagem está toda neste saco de viagem, bem pequeno, e ainda não decidimos se regressamos a Coimbra ou procuraremos um hotel onde descansar.

Adeus e até breve!

Felizmente o ambiente entrou numa acalmia que não esperava, pois que a minha entrada, e repito, foi desastrosa. O ser impulsiva empurra-me a não ponderar as consequências. Julgo que todos ficamos a ganhar, ou pelo menos “bem na fotografia”.

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