sábado, 24 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Capítulo 19



- Isabel, há um tema que não temos comentado, ou muito ao de leve. Eu porque entendi que ao não te referires a ele era, sem dúvida, porque preferias que ficasse na sombra e tu, se não errei, precisamente não te sentias com vontade de tratar de tal assunto.
Dias atrás contaste como, ficaste sem pai após saberem que ele tinha falecido “ao serviço da Pátria”, em Timor. Uma qualificação solene dos factos que pouco contribui ao bem estar de uma viúva e de uma criança de tenra idade. Referiste que andaste na escola, mas pouco mais sei desta tua juventude. Não é que seja excessivamente curioso, mas após estarmos casados a convivência entre os dois entendo que deve ficar noutro patamar, mais abrangente, mais comum. Estás de acordo?
- Disse, se não me falha a memória, que a minha tia Fernanda, irmã do meu pai, sabedora do aperto que existia na casa dos meus pais e irmãos, se ofereceu a nos dar guarida na casa de habitação que ficava no andar acima da farmácia. Que era o modo de vida do casal. pois que o marido, então tio Ricardo, tinha habilitações, com diploma, para ser responsável, e dono da botica, onde a tia após ser treinada por ele passou a ser uma ajudante. Entre os dois atendiam a clientela, mas sempre com a responsabilidade do titular.
Poucos dias depois da nossa chegada; provavelmente no dia seguinte ou no outro, pois vimos que a tia trazia o esquema bem estudado, popós ao marido que a minha mãe poderia vir a ser de muita utilidade ajudando no atendimento, pelo menos nos dias de mercado, se bem que a afluência de pessoas, consoante mais gente se radicava nas redondezas, ia em aumento. Também deixaria de se sentir um peso morto, um carrego, para a irmã e marido. E assim aconteceu. As duas irmãs completavam-se e revezavam-se em harmonia.
Decorridos uns três anos da nossa estadia na casa da tia Fernanda, aconteceu uma desgraça que nos apanhou de surpresa. A tia foi para Aveiro, com o propósito de fazer umas compras, combinar de um vestido numa modista e ainda tratar de papelada nalguma repartição oficial. Passadas umas horas da GNR telefonaram para a farmácia com a notícia de que a tia tinha tido um acidente grave, muito grave, na linha do caminho de ferro. De facto viemos a saber que tinha tido morte instantânea; que ficou esquartejada e que as testemunhas afirmavam que não foi uma queda acidental, mas que, sem dúvida, tinha-se suicidado.
A notícia caiu como uma bomba no lugar. A freguesia não falava noutra coisa, salientando o bom carácter, amabilidade e seriedade da Fernanda. Eu, já garotita, e como é normal um pouco pispirreta tentava não perder pitada daquelas conversas, e menos das que se faziam em voz baixa. Uma das vantagens das crianças é que os adultos esquecem quão atentas estão aqueles anjinhos quando lhes cheira a esturro. Fiquei com a mosca atrás da orelha acerca do interesse que o tio Ricardo tinha pela minha mãe, mais nova do que a tia e, quanto a mim, muito mais bonita. Qualquer desculpa servia ao tio para vir ao balcão e roçar-se pela minha mãe com se não houvesse espaço por trás do balcão. Nunca quis saber se havia ali um adultério familiar. A prudência é a mãe da ciência.
O que te posso dizer é que, tal como dizem no campo que é tradicional, o cunhado fez o possível, e conseguiu, casar com a minha mãe. E eu passei a ter um “padrinho”, que uma forma menos agressiva de referir um padrasto. Já quando estava no liceu em Aveiro, as colegas conhecidas insinuavam, descaradamente, que a minha mãe era culpada da morte da tia. Nunca estes boatos chegaram a ser motivo de quezílias, e com o tempo foram-se apagando. Do casamento resultou o meio irmão Óscar, que meses atrás eu tinha pensado propor para meu padrinho de casamento. Mas tu fizeste tudo à pressa e a teu belo prazer. Não valia a pena impor uma ideia que, de facto, pouco ou nada alterava.
Bolas!! Agora caio em que falaste no teu irmão Óscar. Passou-me por completo, não liguei. Podes desculpar? Não foi por mal e muito menos me passaria na cabeça o desatento a um dos teus pedidos e este era totalmente importante. Estou deveras envergonhado

Continuará

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