Querida
Isabel. Ainda bem que já estamos perto do fim da nossa viagem.
Nestes dias, ou semanas, vimos muitas coisas, apreciamos paisagens,
visitamos palácios, museus, cidades, terras típicas, dormimos em
hotéis espectaculares e comemos tanto em restaurantes com estrelas
como em locais sem tanto aparato, mas sempre bem atendidos e com
pratos apaladados. E de tudo isto o facto mais importante, para mim e
certamente para ti também, é que entre ambos parecia que estávamos,
de facto, numa viagem de noivos entre pessoas muito mais jovens do
que realmente somos. Uns noivos seródios.
Mas
isso não pode esconder que, desde que partimos do Vale, sentisse uma
espécie de remorsos. Era uma sensação de sermos uma espécie de
desertores. Pode ter deixado a impressão de que que fugimos de umas
responsabilidades que de facto não tínhamos. Não sou capaz de
explicar melhor. Mas nestes dias, que deviam de ter sido de absoluta
paz, sossego e alheamento, o facto é que tinha pesadelos ligados aos
mortos e aos bandidos que nos colocaram os cadáveres no terreno.
José,
não tens estado só nesta inquietação. Notei o teu remoer todos
estes dias, e não necessitas de me dizer que sonhavas, até porque
quase todas as noites estavas agitado e chegavas a falar dormido. Só
entendia palavras soltas, mas via bem que o argumento deste teu
tormento interior estava ligado ao tema dos crimes. Nunca te quis dar
a entender que entendia sermos ambos vítimas dos acontecimentos
recentes. Mesmo assim tinha a ilusão de que, com o passar dos dias,
a tua angustia se fosse esbatendo. Não foi assim, uma pena, até
porque este teu fardo também o senti nas minhas costas. Sossega,
tudo se esclarecerá, ou pelo menos poderemos saber que a nossa ficha
policial não ficará maculada com esta façanha alheia.
Agradeço
este teu esclarecimento, mas mesmo assim, quando chegarmos e depois
de ligar à realidade terrestre, a primeira coisa que farei, no dia
seguinte, será procurar que o inspector Cardoso e tentar que me
conceda uns minutos do seu tempo e me diga dos possíveis, ou
impossíveis, progressos na identificação dos responsáveis
directos e indirectos, ou seja dos mandantes, que certamente tudo
farão para ficar na escuridão. Temos que avisar o pessoal da casa,
incluído o feitor Ernesto, no sentido de que não queremos saber das
notícias e boatos, antes de saber o que nos queira dizer a Polícia
Judiciária. Estás de acordo Isabel?
Com
certeza, parece que esta tua reserva é a mais correcta. E a
propósito, eu também tenho que tratar dos meus salões e por isso,
e mais o resto, não desejo acompanhar-te no encontro com o Doutor. O
meu papel tem que ser triplo, como as fichas para ligar mais de uma
coisa à mesma tomada. Por um lado, e principal, agir como uma esposa
“clássica”, ou seja, em segundo plano, mas ser sempre um apoio
garantido. Depois vem o papel de Dona de Casa, do qual não abdico,
mesmo que valorize, e muito, a dedicação da Idalina. Cada uma no
seu lugar, e a Idalina mostrou-me, desde o primeiro dia, que estava
consciente do seu papel na hierarquia da casa. E, finalmente, o de
empresária.
Foi
neste patamar social, se assim o posso definir, que me conheceste e
não tardei a ver, depois de alguns encontros preliminares, que não
eras talhado para te armar em galo da capoeira. Ou seja, que apesar
de teres conhecimento directo, através de mim e por não existirem
segredos, de como estava estruturado o meu negócio, tiveste o bom
senso, que apreciei e apreço, de te manteres mais como observador ou
consultor do que como coproprietário.
Não
sei se consegues avaliar o que sinto e valorizo a esta tua atitude ao
respeito. Se tentar explicar posso escorregar nas palavras, ser rude
ou inconveniente sem querer, mas a realidade é que, para mim e dada
a minha vida anterior, o poder manter um sentimento de independência,
de não sujeição até nas coisas mais melindrosas ou mesquinhas às
autorizações de um marido, facilita-me o ver em ti um igual e não
um esposo como aqueles que eu oiço descrever às clientes do salão.
Muitas delas referem-se aos seus maridos como uns inimigos que estão
obrigadas a respeitar, pelo menos aparentemente, pois as suas
conversas, de foro falsamente íntimo, não são mostras de uma
conjugação de caracteres, e menos até de amor. Não digo do amor
inflamado, expansivo, dos tempos de namoro, mas daquele que se deve
gerar com o convívio conjugal, sereno e contínuo. Aquilo que
acompanha os casais bem avindos.
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