segunda-feira, 25 de junho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 42º




Querida Isabel. Ainda bem que já estamos perto do fim da nossa viagem. Nestes dias, ou semanas, vimos muitas coisas, apreciamos paisagens, visitamos palácios, museus, cidades, terras típicas, dormimos em hotéis espectaculares e comemos tanto em restaurantes com estrelas como em locais sem tanto aparato, mas sempre bem atendidos e com pratos apaladados. E de tudo isto o facto mais importante, para mim e certamente para ti também, é que entre ambos parecia que estávamos, de facto, numa viagem de noivos entre pessoas muito mais jovens do que realmente somos. Uns noivos seródios.

Mas isso não pode esconder que, desde que partimos do Vale, sentisse uma espécie de remorsos. Era uma sensação de sermos uma espécie de desertores. Pode ter deixado a impressão de que que fugimos de umas responsabilidades que de facto não tínhamos. Não sou capaz de explicar melhor. Mas nestes dias, que deviam de ter sido de absoluta paz, sossego e alheamento, o facto é que tinha pesadelos ligados aos mortos e aos bandidos que nos colocaram os cadáveres no terreno.

José, não tens estado só nesta inquietação. Notei o teu remoer todos estes dias, e não necessitas de me dizer que sonhavas, até porque quase todas as noites estavas agitado e chegavas a falar dormido. Só entendia palavras soltas, mas via bem que o argumento deste teu tormento interior estava ligado ao tema dos crimes. Nunca te quis dar a entender que entendia sermos ambos vítimas dos acontecimentos recentes. Mesmo assim tinha a ilusão de que, com o passar dos dias, a tua angustia se fosse esbatendo. Não foi assim, uma pena, até porque este teu fardo também o senti nas minhas costas. Sossega, tudo se esclarecerá, ou pelo menos poderemos saber que a nossa ficha policial não ficará maculada com esta façanha alheia.

Agradeço este teu esclarecimento, mas mesmo assim, quando chegarmos e depois de ligar à realidade terrestre, a primeira coisa que farei, no dia seguinte, será procurar que o inspector Cardoso e tentar que me conceda uns minutos do seu tempo e me diga dos possíveis, ou impossíveis, progressos na identificação dos responsáveis directos e indirectos, ou seja dos mandantes, que certamente tudo farão para ficar na escuridão. Temos que avisar o pessoal da casa, incluído o feitor Ernesto, no sentido de que não queremos saber das notícias e boatos, antes de saber o que nos queira dizer a Polícia Judiciária. Estás de acordo Isabel?

Com certeza, parece que esta tua reserva é a mais correcta. E a propósito, eu também tenho que tratar dos meus salões e por isso, e mais o resto, não desejo acompanhar-te no encontro com o Doutor. O meu papel tem que ser triplo, como as fichas para ligar mais de uma coisa à mesma tomada. Por um lado, e principal, agir como uma esposa “clássica”, ou seja, em segundo plano, mas ser sempre um apoio garantido. Depois vem o papel de Dona de Casa, do qual não abdico, mesmo que valorize, e muito, a dedicação da Idalina. Cada uma no seu lugar, e a Idalina mostrou-me, desde o primeiro dia, que estava consciente do seu papel na hierarquia da casa. E, finalmente, o de empresária.

Foi neste patamar social, se assim o posso definir, que me conheceste e não tardei a ver, depois de alguns encontros preliminares, que não eras talhado para te armar em galo da capoeira. Ou seja, que apesar de teres conhecimento directo, através de mim e por não existirem segredos, de como estava estruturado o meu negócio, tiveste o bom senso, que apreciei e apreço, de te manteres mais como observador ou consultor do que como coproprietário.

Não sei se consegues avaliar o que sinto e valorizo a esta tua atitude ao respeito. Se tentar explicar posso escorregar nas palavras, ser rude ou inconveniente sem querer, mas a realidade é que, para mim e dada a minha vida anterior, o poder manter um sentimento de independência, de não sujeição até nas coisas mais melindrosas ou mesquinhas às autorizações de um marido, facilita-me o ver em ti um igual e não um esposo como aqueles que eu oiço descrever às clientes do salão. Muitas delas referem-se aos seus maridos como uns inimigos que estão obrigadas a respeitar, pelo menos aparentemente, pois as suas conversas, de foro falsamente íntimo, não são mostras de uma conjugação de caracteres, e menos até de amor. Não digo do amor inflamado, expansivo, dos tempos de namoro, mas daquele que se deve gerar com o convívio conjugal, sereno e contínuo. Aquilo que acompanha os casais bem avindos.

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